FOLHA DE SP - 17/07
Filme 'Custódia' relembra que só existe civilização se existir sacrifício
Sim, todas as famílias felizes são iguais. Mas mesmo as famílias felizes são infelizes nas heranças e nos divórcios.
O amor definha. As máscaras caem. Ressentimentos longamente recalcados emergem com uma violência obscena. Irmãos inseparáveis, capazes de doar mutuamente um rim em caso de necessidade, são agora Caim e Abel nas palavras e nos atos. Amantes eternos viram inimigos eternos.
Onde havia gente refinada há agora animais famintos que lutam pelos despojos da riqueza ou da descendência.
Todos conhecemos esses casos. Alguns de nós já os viveram —como vítimas ou algozes. É por isso que o filme "Custódia", de Xavier Legrand, nos é tão próximo. Aqueles somos nós.
E "aqueles" são Antoine (Denis Ménochet) e Miriam (Léa Drucker). Houve um tempo em que namoraram, casaram, tiveram filhos. Quando os conhecemos, esse tempo parece tão distante como a época em que os dinossauros habitaram a Terra.
Agora, Antoine e Miriam vivem nas suas trincheiras bélicas, disputando a custódia do filho Julien (assombroso Thomas Gioria). O rapaz tem 11 anos, tem medo do pai e não quer partilhar a existência com ele. A filha também não —mas, beirando os 18 anos, é quase adulta e fará o que entender.
O pai, compreensivelmente, não se conforma. Acusa a mãe de manipulações torpes. E pede em tribunal uma segunda oportunidade.
O tribunal acede ao pedido do pai. Mas o pai não está disposto a uma segunda oportunidade; ele quer regressar à primeira oportunidade e o filho serve como instrumento para esse passado que só existe na cabeça dele.
Rejeitado pela mulher e pelos filhos, Antoine se transforma em animal selvagem. É o início da sua desintegração como ser social.
O filme de Xavier Legrand é primoroso na forma como retrata esse paradoxo assustador: o momento em que o ódio pela ex-mulher suplanta até o amor pelo próprio filho. Quem disse que o amor parental era o mais forte dos sentimentos humanos? Nem sempre, leitor otimista.
Mas Antoine, na sua brutalidade instintiva, relembra-nos de uma verdade dolorosa sobre a condição humana: só existe a civilização se existir primeiro o sacrifício. Ou, melhor dizendo, a única forma de não nos matarmos mutuamente passa pela capacidade de renunciarmos às nossas vaidades e frustrações.
Freud explica isso. Mas, antes de Freud, houve Thomas Hobbes. No estado da natureza, os homens estavam entregues ao seu destino. Por isso a vida era solitária, pobre, sórdida —e curta.
Para impedir esse negro destino, foi preciso sacrificar algo no altar do Leviatã: a liberdade radical e mortal que só temos na selva, onde "o homem é o lobo do homem". Foi preciso, em suma, renunciar a ganhos imediatos em nome de um bem maior: a paz e a segurança possíveis para todos.
Sem esse sacrifício, a história não teria saído das cavernas. Aliás, a própria experiência democrática depende desse sacrifício. O professor e ensaísta britânico David Runciman, em livro recente que vou comentar na próxima coluna ("How Democracy Ends"), relembra essa verdade: um dos maiores perigos para a sobrevivência da democracia está no declínio da cultura cívica que lhe servia de suporte.
Essa cultura cívica significa uma coisa: eu aceito a vontade da maioria, mesmo que essa vontade seja contrária aos meus interesses imediatos. Por quê? Porque a continuidade do regime democrático é mais importante do que as minhas conveniências momentâneas.
Umas vezes ganhamos, outras perdemos. É a vida.
Mas a derrota da minha causa não autoriza a transformação da arena pública em campo de batalha.
Dizer que esse espírito de sacrifício está em regressão nas democracias ocidentais é, obviamente, um eufemismo. Mas é preciso acrescentar que essa regressão começa nas nossas próprias vidas —na forma como falamos continuamente de "direitos" sem nunca nos considerarmos sujeitos de "deveres".
No filme, Antoine começa por aceitar as regras da sociedade estabelecida: perante o tribunal, ele parece disposto a sacrificar as suas "dores narcísicas" em nome da convivência gentil com a mulher e do afeto que sente pelo filho.
Mas essa disponibilidade é uma ilusão: Antoine é incapaz de suportar as frustrações da realidade. O lobo suplanta o homem. O que antes poderia ser compromisso é agora um imperativo de destruição.
Não revelo o final. Exceto para concordar com a lição do filme: o inferno provocado pela recusa da civilização só pode ser redimido pelos instrumentos da própria civilização.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
Filme 'Custódia' relembra que só existe civilização se existir sacrifício
Sim, todas as famílias felizes são iguais. Mas mesmo as famílias felizes são infelizes nas heranças e nos divórcios.
O amor definha. As máscaras caem. Ressentimentos longamente recalcados emergem com uma violência obscena. Irmãos inseparáveis, capazes de doar mutuamente um rim em caso de necessidade, são agora Caim e Abel nas palavras e nos atos. Amantes eternos viram inimigos eternos.
Onde havia gente refinada há agora animais famintos que lutam pelos despojos da riqueza ou da descendência.
Todos conhecemos esses casos. Alguns de nós já os viveram —como vítimas ou algozes. É por isso que o filme "Custódia", de Xavier Legrand, nos é tão próximo. Aqueles somos nós.
E "aqueles" são Antoine (Denis Ménochet) e Miriam (Léa Drucker). Houve um tempo em que namoraram, casaram, tiveram filhos. Quando os conhecemos, esse tempo parece tão distante como a época em que os dinossauros habitaram a Terra.
Agora, Antoine e Miriam vivem nas suas trincheiras bélicas, disputando a custódia do filho Julien (assombroso Thomas Gioria). O rapaz tem 11 anos, tem medo do pai e não quer partilhar a existência com ele. A filha também não —mas, beirando os 18 anos, é quase adulta e fará o que entender.
O pai, compreensivelmente, não se conforma. Acusa a mãe de manipulações torpes. E pede em tribunal uma segunda oportunidade.
O tribunal acede ao pedido do pai. Mas o pai não está disposto a uma segunda oportunidade; ele quer regressar à primeira oportunidade e o filho serve como instrumento para esse passado que só existe na cabeça dele.
Rejeitado pela mulher e pelos filhos, Antoine se transforma em animal selvagem. É o início da sua desintegração como ser social.
O filme de Xavier Legrand é primoroso na forma como retrata esse paradoxo assustador: o momento em que o ódio pela ex-mulher suplanta até o amor pelo próprio filho. Quem disse que o amor parental era o mais forte dos sentimentos humanos? Nem sempre, leitor otimista.
Mas Antoine, na sua brutalidade instintiva, relembra-nos de uma verdade dolorosa sobre a condição humana: só existe a civilização se existir primeiro o sacrifício. Ou, melhor dizendo, a única forma de não nos matarmos mutuamente passa pela capacidade de renunciarmos às nossas vaidades e frustrações.
Freud explica isso. Mas, antes de Freud, houve Thomas Hobbes. No estado da natureza, os homens estavam entregues ao seu destino. Por isso a vida era solitária, pobre, sórdida —e curta.
Para impedir esse negro destino, foi preciso sacrificar algo no altar do Leviatã: a liberdade radical e mortal que só temos na selva, onde "o homem é o lobo do homem". Foi preciso, em suma, renunciar a ganhos imediatos em nome de um bem maior: a paz e a segurança possíveis para todos.
Sem esse sacrifício, a história não teria saído das cavernas. Aliás, a própria experiência democrática depende desse sacrifício. O professor e ensaísta britânico David Runciman, em livro recente que vou comentar na próxima coluna ("How Democracy Ends"), relembra essa verdade: um dos maiores perigos para a sobrevivência da democracia está no declínio da cultura cívica que lhe servia de suporte.
Essa cultura cívica significa uma coisa: eu aceito a vontade da maioria, mesmo que essa vontade seja contrária aos meus interesses imediatos. Por quê? Porque a continuidade do regime democrático é mais importante do que as minhas conveniências momentâneas.
Umas vezes ganhamos, outras perdemos. É a vida.
Mas a derrota da minha causa não autoriza a transformação da arena pública em campo de batalha.
Dizer que esse espírito de sacrifício está em regressão nas democracias ocidentais é, obviamente, um eufemismo. Mas é preciso acrescentar que essa regressão começa nas nossas próprias vidas —na forma como falamos continuamente de "direitos" sem nunca nos considerarmos sujeitos de "deveres".
No filme, Antoine começa por aceitar as regras da sociedade estabelecida: perante o tribunal, ele parece disposto a sacrificar as suas "dores narcísicas" em nome da convivência gentil com a mulher e do afeto que sente pelo filho.
Mas essa disponibilidade é uma ilusão: Antoine é incapaz de suportar as frustrações da realidade. O lobo suplanta o homem. O que antes poderia ser compromisso é agora um imperativo de destruição.
Não revelo o final. Exceto para concordar com a lição do filme: o inferno provocado pela recusa da civilização só pode ser redimido pelos instrumentos da própria civilização.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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