A curiosa unidade de propósitos entre o agente da intervenção e a vítima dela sugere que uma parte crucial da história permanece escondida
A Paraíso do Tuiuti recuperou o morro clássico, puro e sofrido, adicionando-lhe o discurso farsesco do PT, que faz a escravidão perenizar-se no “cativeiro social”, celebra a CLT varguista e anuncia uma “libertação” conduzida pelo “quilombo da favela”. Na quarta de cinzas, encerrado o carnaval político pra inglês ver, chegou a intervenção federal, pra brasileiro ver. Que tiro foi esse? Os jornalistas referem-se à “intervenção na área de segurança do Rio”, numa tentativa desesperada de conciliar o conceito à realidade factual. O governador segue no comando do governo estadual. Mas o Planalto, com seu beneplácito explícito, cassa-lhe o controle da segurança pública. O paradoxo indica o triunfo da Tuiuti: continuamos, deploravelmente, a fingir que o morro — tanto faz se casto ou criminoso, subjugado ou sublevado — é um mundo à parte.
A história velha evolui em novo capítulo. Na sua hora áurea, a política das UPPs ganhou tanto apoio, político e popular, quanto terá a intervenção, ao menos na sua fase inicial. As UPPs produziram um equilíbrio temporário, cobrindo com gaze fina a ferida purulenta. Nas “comunidades pacificadas”, atualizaram-se os pactos criminosos, enquanto se redividiam os territórios das facções armadas. A milícia, que é a “polícia do B”, alastrou seu poder, saltando dos serviços de botijão de gás e “gatonet” para os negócios imobiliários. O CV desgastou-se em conflitos com a ADA e o TCP, o que preparou a irrupção do PCC em terras cariocas.
Sob a precária segurança das UPPs, nada se fez para reformar as polícias, identificar as ramificações políticas do crime organizado ou radiografar suas relações com as autoridades públicas. A ruptura do equilíbrio provisório decorreu do colapso financeiro estadual, que provocou uma implosão da Polícia Militar, nas formas de ondas de abandonos abertos ou ocultos dos empregos. Os pedidos de baixa, o absenteísmo disfarçado e a cooptação de policiais pelas milícias e pelas facções escancararam a cidade à criminalidade comum. Agências dos correios pararam de entregar objetos em áreas críticas da metrópole. Táxis começaram a recusar corridas fora dos limites da Zona Sul. Que tiro foi esse? As armas e os projéteis desceram o morro, dinamitando a “normalidade” prévia. Daí, a intervenção.
Temer reassumiu a iniciativa perdida com o arrastado fracasso da reforma previdenciária e, sobretudo, apossou-se da bandeira valiosa da segurança pública, apertando uma tecla estratégica no cenário da campanha presidencial que se avizinha. Nesse passo, contudo, reagiu a uma catástrofe real. Pela primeira vez, o presidente casual, sitiado pelo descrédito, tem a oportunidade de ganhar a atenção popular. As pessoas comuns querem, como mínimo, circular nas ruas sem medo. Por isso, a oposição à intervenção circunscreve-se a forças políticas hipnotizadas pela ideologia (PT, PSOL) ou pelo mais rasteiro oprtunismo eleitoral (PT, novamente, Jair Bolsonaro, Ciro Gomes). Mas a alma lampedusiana da intervenção de Temer emergirá cedo ou tarde: trata-se de mudar tudo para que tudo permaneça como sempre foi.
Duas perguntas óbvias não terão resposta do Planalto. A primeira: se não há divergências fundamentais de política entre o governador e o presidente, por que cassar as atribuições do primeiro na área da segurança pública? A segunda: por que a intervenção circunscreve-se à segurança se o colapso do Rio abrange as finanças estaduais e atinge o conjunto dos serviços públicos?
“Nós, só com a Polícia Militar e a Polícia Civil, não estamos conseguindo” deter o crime organizado, alegou Luiz Fernando Pezão. A conclusão lógica do diagnóstico seria um pedido estadual para ampliar a operação militar federal de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Mas, no lugar disso, segundo informa-nos o Planalto, Pezão “participou das discussões” e “concordou com a elaboração do decreto” de intervenção. A curiosa unidade de propósitos entre o agente da intervenção e a vítima dela sugere que uma parte crucial da história permanece escondida.
Que tiro foi esse? A intervenção destina-se a restaurar uma película de equilíbrio sem destruir a rede de instáveis alianças que entrelaça a elite política estadual, a polícia, a milícia e as fações criminosas. O poder militar está encarregado de recuperar a capacidade policial de conter a criminalidade comum, circunscrevendo o tiroteio ao universo das favelas. O interventor designado não tem a prerrogativa de extirpar o crime organizado das estruturas políticas, administrativas e policiais do Rio. Sua missão exclusiva é retraçar a linha demarcatória entre a “cidade” e o “morro”, a fim de represar a crise.
Pezão fica. A sua presença no governo, apenas sem o comando da segurança pública, cumpre a função de um seguro. Temer está dizendo aos sócios “respeitáveis” das facções criminosas que, no fim, tudo será como antes. De certo modo, a Paraíso do Tuiuti venceu. O “morro” pode continuar a ser cantado como lugar mítico, de calvário e redenção, desde que a célebre bala perdida não ultrapasse os seus limites. A festa deve seguir, respeitando-se um adequado intervalo de silêncio.
Demétrio Magnoli é sociólogo
A Paraíso do Tuiuti recuperou o morro clássico, puro e sofrido, adicionando-lhe o discurso farsesco do PT, que faz a escravidão perenizar-se no “cativeiro social”, celebra a CLT varguista e anuncia uma “libertação” conduzida pelo “quilombo da favela”. Na quarta de cinzas, encerrado o carnaval político pra inglês ver, chegou a intervenção federal, pra brasileiro ver. Que tiro foi esse? Os jornalistas referem-se à “intervenção na área de segurança do Rio”, numa tentativa desesperada de conciliar o conceito à realidade factual. O governador segue no comando do governo estadual. Mas o Planalto, com seu beneplácito explícito, cassa-lhe o controle da segurança pública. O paradoxo indica o triunfo da Tuiuti: continuamos, deploravelmente, a fingir que o morro — tanto faz se casto ou criminoso, subjugado ou sublevado — é um mundo à parte.
A história velha evolui em novo capítulo. Na sua hora áurea, a política das UPPs ganhou tanto apoio, político e popular, quanto terá a intervenção, ao menos na sua fase inicial. As UPPs produziram um equilíbrio temporário, cobrindo com gaze fina a ferida purulenta. Nas “comunidades pacificadas”, atualizaram-se os pactos criminosos, enquanto se redividiam os territórios das facções armadas. A milícia, que é a “polícia do B”, alastrou seu poder, saltando dos serviços de botijão de gás e “gatonet” para os negócios imobiliários. O CV desgastou-se em conflitos com a ADA e o TCP, o que preparou a irrupção do PCC em terras cariocas.
Sob a precária segurança das UPPs, nada se fez para reformar as polícias, identificar as ramificações políticas do crime organizado ou radiografar suas relações com as autoridades públicas. A ruptura do equilíbrio provisório decorreu do colapso financeiro estadual, que provocou uma implosão da Polícia Militar, nas formas de ondas de abandonos abertos ou ocultos dos empregos. Os pedidos de baixa, o absenteísmo disfarçado e a cooptação de policiais pelas milícias e pelas facções escancararam a cidade à criminalidade comum. Agências dos correios pararam de entregar objetos em áreas críticas da metrópole. Táxis começaram a recusar corridas fora dos limites da Zona Sul. Que tiro foi esse? As armas e os projéteis desceram o morro, dinamitando a “normalidade” prévia. Daí, a intervenção.
Temer reassumiu a iniciativa perdida com o arrastado fracasso da reforma previdenciária e, sobretudo, apossou-se da bandeira valiosa da segurança pública, apertando uma tecla estratégica no cenário da campanha presidencial que se avizinha. Nesse passo, contudo, reagiu a uma catástrofe real. Pela primeira vez, o presidente casual, sitiado pelo descrédito, tem a oportunidade de ganhar a atenção popular. As pessoas comuns querem, como mínimo, circular nas ruas sem medo. Por isso, a oposição à intervenção circunscreve-se a forças políticas hipnotizadas pela ideologia (PT, PSOL) ou pelo mais rasteiro oprtunismo eleitoral (PT, novamente, Jair Bolsonaro, Ciro Gomes). Mas a alma lampedusiana da intervenção de Temer emergirá cedo ou tarde: trata-se de mudar tudo para que tudo permaneça como sempre foi.
Duas perguntas óbvias não terão resposta do Planalto. A primeira: se não há divergências fundamentais de política entre o governador e o presidente, por que cassar as atribuições do primeiro na área da segurança pública? A segunda: por que a intervenção circunscreve-se à segurança se o colapso do Rio abrange as finanças estaduais e atinge o conjunto dos serviços públicos?
“Nós, só com a Polícia Militar e a Polícia Civil, não estamos conseguindo” deter o crime organizado, alegou Luiz Fernando Pezão. A conclusão lógica do diagnóstico seria um pedido estadual para ampliar a operação militar federal de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Mas, no lugar disso, segundo informa-nos o Planalto, Pezão “participou das discussões” e “concordou com a elaboração do decreto” de intervenção. A curiosa unidade de propósitos entre o agente da intervenção e a vítima dela sugere que uma parte crucial da história permanece escondida.
Que tiro foi esse? A intervenção destina-se a restaurar uma película de equilíbrio sem destruir a rede de instáveis alianças que entrelaça a elite política estadual, a polícia, a milícia e as fações criminosas. O poder militar está encarregado de recuperar a capacidade policial de conter a criminalidade comum, circunscrevendo o tiroteio ao universo das favelas. O interventor designado não tem a prerrogativa de extirpar o crime organizado das estruturas políticas, administrativas e policiais do Rio. Sua missão exclusiva é retraçar a linha demarcatória entre a “cidade” e o “morro”, a fim de represar a crise.
Pezão fica. A sua presença no governo, apenas sem o comando da segurança pública, cumpre a função de um seguro. Temer está dizendo aos sócios “respeitáveis” das facções criminosas que, no fim, tudo será como antes. De certo modo, a Paraíso do Tuiuti venceu. O “morro” pode continuar a ser cantado como lugar mítico, de calvário e redenção, desde que a célebre bala perdida não ultrapasse os seus limites. A festa deve seguir, respeitando-se um adequado intervalo de silêncio.
Demétrio Magnoli é sociólogo
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