segunda-feira, fevereiro 05, 2018

O teatro da imoralidade - DENIS LERRER ROSENFIELD

ESTADÃO - 05/02

Quem mais se opõe à reforma da Previdência são os privilegiados do serviço público


Pena que a discussão sobre a reforma da Previdência enverede para questões menores, referentes às mais diversas formas de interesses particulares e partidários, quando está em questão o interesse coletivo. Perde-se a noção de bem maior, de bem público, como se os bens particulares devessem primar sobre o todo. São os privilégios defendidos com tanto afinco pelas corporações do Estado, como se eles se confundissem com o atendimento das demandas de seu estamento burocrático, seja no Executivo, no Legislativo, no Judiciário ou no Ministério Público. São também os interesses de políticos e partidos, que barganham suas demandas para a aprovação da reforma como se, de novo, o bem menor devesse ter primazia sobre o maior.

A palavra moralidade, em suas diferentes modalidades, com destaque para as moralidades administrativa e política, está recorrentemente em pauta. A sociedade luta por moralidade, assim como dizem fazer juízes e promotores. Acontece que cada setor tem uma acepção específica de moralidade que, bem examinada, talvez não resistisse ao teste de universalidade, de seu valor para todos os cidadãos.

Será que o atendimento de demandas das corporações pode ser qualificado como moral, embora se apresente sob o manto da moralidade pública? Não haveria uma máscara que deveria ser desvelada? Quando juízes e promotores, representados por suas instituições de classe, defendem seus privilégios, podem eles dizer que estão tendo uma atitude moral?

Um exemplo atual, fora do escopo da reforma da Previdência, é bastante ilustrativo. Juízes e promotores, em suas várias instâncias, defendem o auxílio-moradia, superior a R$ 4 mil para cada indivíduo. Na origem, tal benefício era perfeitamente justificável, pois se destinava a juízes, juízas, promotores e promotoras que, para o exercício de suas funções, se haviam deslocado para outros municípios. Necessitavam de moradia nessa sua etapa de transição. Nada havia que agredisse a moralidade.

Ora, para o atendimento de demandas corporativas, esse benefício foi estendido a todos, independentemente de terem casa própria e de atuarem em seus próprios municípios. Como se não fosse suficiente, há casos de casais de juízes e promotores que ganham duas vezes o mesmo auxílio, vivendo sob o mesmo teto. Seus defensores vêm a público dizer que isso é legal. Pode até ser. Mas tal benefício é moral?

A situação torna-se ainda mais esdrúxula na medida em que são os mesmos juízes e promotores, beneficiários de tais privilégios claramente imorais, que enchem a boca para se declararem defensores da moralidade pública. Como assim? Pessoas que usufruem privilégios manifestamente imorais podem colocar-se na posição de representantes da ética? Não há aí flagrante contradição?

A situação torna-se ainda mais problemática por serem esses mesmos personagens, destinatários de benefícios imorais, que criticam e menosprezam a classe política por sua imoralidade. Há dois pesos e duas medidas. Os políticos não poderiam ser imorais pela atividade que exercem, enquanto juízes e promotores poderiam usufruir mais um privilégio, o da imoralidade, apesar de se exibirem como os representantes mesmos da moralidade.

O Estado foi, nessa perspectiva, capturado pelo estamento burocrático, embora essa captura se apresente sob a forma da moralidade e do bem público, apesar de seus agentes não deixarem de atuar sob a forma da imoralidade no atendimento de seus interesses particulares, seus privilégios, pondo o bem próprio acima do público. No Brasil, as corporações estatais passaram a atuar não no sentido de uma burocracia com vocação universal no sentido hegeliano do termo, mas ativa na consecução de seus interesses particulares, sob a forma de privilégios vedados à maioria da população. O que vale para uns não valeria para todos.

Gozam de uma espécie de direito exclusivo, que só é “direito” numa acepção muito peculiar, pois carente de qualquer universalidade, ao qual os cidadãos normais não têm nenhum acesso. “Direitos exclusivos” só impropriamente deveriam ser ditos direitos. Cria-se, assim, uma situação completamente anômala, pois o Estado, que deveria estar a serviço da sociedade e dos cidadãos, se põe a serviço de suas corporações, como se o interesse delas coincidisse com o interesse público. De fato, embora não de direito, o Estado é capturado por suas corporações, que lutam com afinco pela conservação e ampliação de seus privilégios.

É como se o Tesouro público devesse a elas subordinar-se, com essas corporações nem mais escondendo o seu interesse particular como um bem maior, embora façam campanhas e criem justificativas como se estivessem a serviço da comunidade. Há mesmo aí uma certa perda de pudor.

Logo, a captura do Estado traduz-se não apenas pela injustiça, ao tornar desiguais os membros das corporações em relação ao resto dos cidadãos, tornando uma quimera o conceito de igualdade de oportunidades e de direitos que o Estado deveria representar, como também produz graves consequências do ponto de vista do equilíbrio fiscal. Privilégios têm custos não apenas no aspecto moral e político, mas também econômico. É o Estado aprisionado, que passa a agir em dissonância com a sociedade, à qual deveria servir e representar.

E são esses interesses corporativos, estamentais, que se insurgem com tanta força contra a reforma da Previdência, encenando a defesa dos interesses coletivos, quando, na verdade, estão a defender seus interesses próprios. O bem das corporações coloca-se acima do bem público. Os que usufruem os maiores benefícios, os que têm para si uma fatia desproporcional dos recursos públicos, são os que se apresentam como os defensores do mesmo interesse público e da moralidade.

O teatro da imoralidade deveria ter limites.

* Professor de Filosofia na UFRGS

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