FOLHA DE SP - 04/01
Assisti ao balé "O Quebra-Nozes", de Tchaikóvski, umas cinco vezes ao longo da infância, sempre no Teatro alla Scala, de Milão. E sempre em dezembro.
Resumindo a história, uma menina, Clara, pede, como presente de Natal, um quebra-nozes que tem a aparência de um soldado. O irmão de Clara quebra o braço do quebra-nozes, e Clara tenta consolar seu brinquedo. Enfim, ela sonha: chega um exército de ratazanas, e o quebra-nozes lidera os soldados que a protegem. Quando Clara acorda, ela encontra alguém que é exatamente o quebra-nozes do sonho.
Pelos sentimentos um pouco melados, pelo clima mágico e pela circunstância (o quebra-nozes é um presente de Natal e as nozes são um tira-gosto natalino), o "Quebra-Nozes" se tornou o espetáculo de Natal por definição mundo afora (no mês de dezembro inteiro, o balé da cidade de Nova York apresentou o "Quebra-Nozes", como a cada ano).
Para as crianças, à condição de elas saberem um pouco a história, o balé de Tchaikóvski não é chato. E os pais gostam de mostrar uma obra de arte a seus rebentos. Mas o que resta de uma obra de arte quando ela se torna um clichê?
Uma nota dos "Diários Íntimos" de Baudelaire diz: "Créer un poncif, c'ést le génie. Je dois créer un poncif" –criar um clichê, esse é o gênio. Preciso criar um clichê.
Nota: "poncif" é uma folha estêncil, "clichê" é uma folha estereotipada ou uma chapa fotográfica de negativo: instrumentos de repetição infinita do mesmo.
Vinda de Baudelaire, a frase talvez fosse irônica. Mas entendo que, mesmo ironicamente, ele tivesse a ambição de criar um clichê, como se essa fosse a marca do sucesso cultural.
Agora, não acho que um autor sozinho, mesmo do tamanho de Baudelaire, possa criar um clichê. Os clichês são o resultado de esforços coletivos e se afirmam porque prometem uma gratificação para todos.
O Natal, por exemplo, é um extraordinário clichê. A cada ano, desencadeado pela aproximação da festa religiosa, ele volta com o mesmo pacote de afetos e com a mesma aura. O Natal nos gratifica a todos nos fazendo acreditar que somos MUITO melhores do que somos –"melhores" significa aqui mais generosos, bondosos, caritativos e solidários. Os votos para o Ano-Novo, aliás, são outro clichê, preparado pelo clichê de Natal,
Nova York, nesta estação, é o clichê dos clichês de Natal. Os turistas deixam suas cidades decoradas de luzes, papais noéis e árvores de Natal para passear na cidade que tem a reputação de ser a mais decorada de todas.
Para os brasileiros, Nova York, nestes dias, é um imenso shopping enfeitado para o Natal, só que ao ar livre e onde, pelo frio, a neve e as renas fazem sentido. Como os shoppings brasileiros, Nova York inteira está imersa numa trilha sonora natalina permanente, da qual não há como escapar. Por sorte, em Nova York, as sirenes de ambulâncias, polícia e bombeiros quebram frequentemente o encanto, lembrando que a vida real ainda existe, atrás de "Jingle Bells" e "Noite Feliz".
Pela primeira vez na vida, fui ver as vitrines da Saks, loja de departamento na Quinta Avenida. A calçada é tomada por famílias de turistas numa espécie de sorriso congelado, não se sabe se é pela temperatura ou pelo êxtase do espírito de Natal –que inclui os olhos arregalados pela maravilha (do milagre, dos presentes, da bondade possível e das mercadorias nos mostruários das lojas).
Pois bem, as vitrines da Saks são péssimas ou, no mínimo, ordinárias –nada melhor do que cada turista já viu num comércio qualquer de sua cidade de origem. Neste ano, são cenas de "Branca de Neve e os Sete Anões", com algumas personagens se movimentando levemente.
"Branca de Neve" da Disney como decoração natalina é um clichê dentro de um clichê. E isso torna as vitrines da Saks ainda mais encantadoras aos olhos dos turistas e dos nova-iorquinos que desfilam sorrindo para contemplá-las, pois o que eles procuram não é nenhum prazer estético, mas apenas a confirmação do clichê, sua repetição.
Mas o que a gente ganha com o clichê? No caso do Natal, a convicção de sermos todos bons, "no fundo"? Uma sensação de estabilidade, porque o clichê volta a cada ano?
Talvez. Mas suspeito que o maior atrativo do clichê seja seu caráter quase universal: basta aderir ao clichê para fazer parte de uma coletividade. Melhor todos juntos no clichê do que cada um tendo que pensar por sua conta. Não é? (estou sendo irônico, tá?)
Nenhum comentário:
Postar um comentário