FOLHA DE SP - 19/01
Saio do cinema depois de assistir a "Roda Gigante", o filme mais recente de Woody Allen. Então penso, aterrorizado com minhas próprias dúvidas: será que eu fiz a escolha acertada? Assistir a um filme de Woody Allen é contribuir para o seu sucesso como diretor?
Por que motivo não fui solidário com as vítimas de agressão sexual, repudiando Woody e a sua obra?
Mentira, leitor. Não pensei nada disso. Melhor, pensei. Mas depois dei instruções à família para que me internem na eventualidade de um dia eu pensar mesmo isso.
Eis o problema: em 2014, em carta para o "New York Times", Dylan Farrow, a filha adotiva de Woody Allen, acusou o pai de a ter molestado sexualmente na infância.
A história era conhecida desde 1992. Mas também era conhecido o veredito da justiça: Woody Allen estava inocente.
Pior: o irmão de Dylan acusou Mia Farrow, então em pleno divórcio litigioso com Woody, de ter manipulado a filha para que esta acusasse o pai desse repugnante crime.
Fim de história?
Longe disso: Hollywood descobriu agora que Woody Allen, 25 anos depois, tem lepra. Perdi a conta aos atores —passados e presentes— que rasgam as vestes em público e mostram arrependimento por terem trabalhado com ele.
Outros, preventivamente, declararam que jamais trabalharão com o diretor. Desse coro, Alec Baldwin foi uma exceção: depois de relembrar que Woody Allen foi ilibado das acusações, o ator declarou que ter trabalhado com ele foi das melhores coisas da sua carreira. (E foi, Alec.)
Entenda, leitor: a questão não está em saber se o abuso de crianças é coisa séria. Claro que é. Mais: é um crime invulgarmente repugnante, que deve ser punido com uma dureza exemplar.
A questão é outra: será que devemos abandonar os princípios básicos de um Estado de Direito e linchar em público alguém que foi acusado por outro de uma conduta reprovável?
Cuidado com a resposta. Se ela é afirmativa, esse é um mundo em que eu não quero viver. Até porque eu conheço esse mundo: é o mundo típico dos regimes totalitários, que executava "dissidentes" sem provas, sem julgamento, sem nada.
É um mundo destrutivo, sim. Mas também é um mundo autodestrutivo: faz parte da dinâmica totalitária devorar os seus próprios filhos.
Os jacobinos souberam disso durante o Terror da Revolução Francesa. Os bolcheviques também com as purgas de Stálin na década de 1930.
Por outras palavras: os carrascos de hoje podem ser facilmente as vítimas de amanhã. Basta que alguém, algures, siga os mesmos métodos duvidosos.
E, quando esse momento chegar, a que tipo de defesa terão direito? "Presunção de inocência"? Mas como, se eles aboliram essa presunção com seus comportamentos histéricos?
Tentar acabar com o abuso reinante na indústria de cinema é um objetivo meritório. Um objetivo que, convém lembrar, vem com anos de atraso, depois do secretismo covarde e provavelmente criminoso de muitos puritanos de agora.
Mas ao lado dessa luta ergue-se uma outra guilhotina: uma lâmina sinistra que cai sobre qualquer cabeça só porque alguém soltou um grito.
Só mais uma coisa: "Roda Gigante" é excelente. E bastante apropriado ao tema em análise: às vezes, o pior castigo que pode existir é a roda dar uma volta completa para nos apanhar no final.
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