Ricardo Lewandowski acertou. Refirome à decisão de devolver à Procuradoria-Geral da República a delação premiada de Renato Pereira, o marqueteiro que esteve a serviço do PMDB do Rio de Janeiro. O movimento consiste na primeira freada de arrumação do pós- Janot e reage ao estado de frouxidão, chancelado por Edson Fachin, que permitiu que algo como o acordo da JBS fosse firmado, vergonhosa passagem em que o Supremo Tribunal Federal se comportou como despachante do Ministério Público.
Era tranco necessário, o de Lewandowski. Mas que não representa o mais mínimo desrespeito ao que fora definido, em junho, pelo plenário do STF. Naquela ocasião, o tribunal foi claro em estabelecer que os termos de um acordo decorrente de colaboração premiada poderiam ser revistos caso constatada alguma ilegalidade. E não é disso que se trata a demanda do ministro, de um juiz identificando irregularidades e pedindo que o contrato seja reformado para coincidir com a lei brasileira? Note o leitor que Lewandowski não descartou o acordo, que logo será homologado; mas tão somente exigiu reparos que o colocassem em linha com o disposto nos códigos.
Por que, então, toda essa histeria? Por que essa deturpação de leitura tal e qual tivesse o ministro jogado a delação de Pereira no lixo, em vez de simplesmente cobrar seu aprimoramento? Por que, se o que foi determinado pelo juiz outra coisa não faz que proteger o instrumento da delação premiada do achincalhe ao qual justiceiros o submetem? Por quê?
Respondo: porque o influente setor janotista do MP tem um projeto de poder e grita sempre que o vê contrariado. Essa turma conseguiu operar um transtorno de percepção na parte da sociedade que pauta opinião, de modo que de repente se tornou ataque à Lava- Jato — tudo é ataque à Lava Jato — o que não passa de defesa do estado de direito contra a sanha expansionista da facção jacobina dos procuradores.
Mas, afinal, em que consiste esse plano de autonomia do MP?
Numa frente, duela com a Polícia Federal pelo direito de investigar. Um perigo sob qualquer ângulo de análise, tanto porque significaria ainda mais poder a uma instituição que detém o monopólio da denúncia ( e, parece, também do vazamento de conteúdos sigilosos), e sobre a qual são vagos os mecanismos de controle ( como se viu no caso de Marcelo Miller, o braço- direito de Janot que atuou como dublê de procurador e advogado, e que não está preso), quanto porque tecnicamente incapaz de proceder a uma investigação sem deixar furos processuais ( como se observou na anarquia em que a pretensa capacidade investigativa do MP jogou a delação dos Batista, lá onde se fez avançar como base probatória uma gravação não periciada).
Em outra frente, testa os limites da República para se inscrever como um remake de poder moderador. Ou não terá Lewandowski se manifestado contra os pilares de um acordo em que a PGR não só tentou invadir atribuições do Judiciário, a quem exclusivamente cabe a definição de penas e o perdão judicial, como as do Legislativo, ao propor cláusulas não previstas nos códigos legais do Brasil.
Dúvida não há, portanto, de que o Supremo terá de retomar o debate sobre as regras para o estabelecimento de acordo de delação premiada no Brasil — e sobre o alcance da atividade do MP a respeito. Em junho, quando a questão foi apreciada pela corte, a profundidade da barbárie em que consistiu o pacto contratado com os donos da JBS ainda não era senão especulada, de forma que o colegiado, em nome da honestidade intelectual, precisará se lançar à autocrítica desdobrada do fato incontornável de que a posição passiva — equivalente à omissão, se adotada por um Poder — que escolheu para si é a mesma sob a qual a ferramenta da delação premiada chegou à beira do precipício do descrédito.
Fala- se que, nessa matéria, o Ministério Público não pode ser surpreendido por “ato desleal” do Judiciário; mas é precisamente o inverso o que ocorre, sendo, na prática, o MP o agente imprevisível a plantar minas contra o texto legal. A insegurança jurídica não deriva de que um magistrado reveja os fundamentos de um acordo à luz do que versa a lei, mas que não o faça e que deixe a coisa correr no ritmo do direito criativo.
Ao devolver à PGR — para ajustes — o acordo de delação proposto pelo MP, Lewandowski não atacou o mister do procurador relativo a esse tema, o de negociador; mas o destacou: a ele cabe exclusivamente negociar as linhas do contrato, a serem, no entanto, aprovadas ou não pelo Judiciário. E assim se educa um candidato a delator. Se tivermos esclarecidas as propriedades institucionais — cada um no seu quadrado — sobre as quais um cidadão pode colaborar com o Estado, teremos defendidas, em particular, a concessão de benefícios realistas ao delator, em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro, e, no geral, a própria segurança jurídica.
Insisto, contra a mistificação: delator premiado é alguém que delinquiu e que acusa terceiros em troca de vantagens que diminuam sua pena, condição que prevê — obrigatoriamente — algum benefício. Podem ser todos aqueles negociados com o MP — ou menos, a depender do juiz. A alternativa é o nada — a integralidade da pena. Isso precisa ficar claro. A melhor garantia ao delator, pois, é a de que as vantagens — maiores ou menores — contratadas no acordo tenham lastro na lei. E quem duvidar que pergunte a Joesley Batista, que levou o tudo à margem da legalidade — e que, por isso, agora está na cadeia.
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