ESTADÃO - 13/10
Uma falsa oposição, que só a mediocridade do atual debate político permite circular por aí
Só mesmo a mediocridade atual do debate político brasileiro permite compreender que uma questão tão mal posta como a oposição social-democracia x liberalismo circule por aí com tanta desenvoltura, sem ser incomodada.
Dá-se geralmente por assentado que social-democracia é sinônimo de esquerda, como se este segundo conceito esbanjasse clareza, nada mais se requerendo, portanto, para esclarecer o primeiro. Essa discutível premissa está na raiz de outras tantas esquisitices, como tentarei demonstrar adiante.
Sim, é certo – e aqui vou direto ao exemplo relevante – que o Partido Social-Democrata Alemão tem origens marxistas. Mais que uma orientação geral, a filiação ao marxismo chegou mesmo a ser uma cláusula estatutária, removida, como é de conhecimento geral, no congresso de Bad Godesberg de 1959. Dessa circunstância de origem e de outras tupiniquins que lhes fomos agregando decorreram novas confusões, algumas bem presentes na maçaroca ideológica que ora impera em nosso país. Creio ser útil citar duas dessas confusões.
Primeiro, dentro do PSDB, a sinonímia social-democracia = esquerda é o núcleo de uma acendrada disputa entre duas alas, uma variavelmente designada como desenvolvimentista, intervencionista, estatista, etc., e a outra explicitamente mais propensa ao pensamento liberal. Segundo, postula-se (há quem postule!) que PSDB e PT disputam o espaço social-democrático, variavelmente identificado como esquerda, centro-esquerda e até como centro tout court!
Ora, para pôr um pouco de ordem nesse emaranhado penso que precisamos apenas de uma distinção lógica elementar e de umas poucas observações históricas.
A distinção lógica é aquela que tradicionalmente estabelecemos entre fins e meios. Um mesmo fim – ou ideal, ou programa político – pode ser buscado com base em diversos meios, ou instrumentos. Por caminhos alternativos, se preferem, conforme sejam as circunstâncias , os recursos disponíveis, os perfis dos contendores. Também aqui me parece útil ir direto ao exemplo mais relevante: a transformação do marxismo em marxismo-leninismo.
Como ninguém ignora, o fim colimado pelos marxistas até a antevéspera da Revolução Russa era a revolução, a destruição do capitalismo e a instauração da sociedade sem classes. Esse, na terminologia que sugeri, era o ideal, o programa ideológico. E os fins? Estes, de Marx à fundação do Partido Comunista russo, haveriam de ser a mobilização de massas, sob a égide do proletariado, único sujeito legítimo da História. Mas eis que um dia Lenin, ponderando as circunstâncias e os recursos que teria eventualmente ao seu dispor, mandou passar uma borracha em tudo isso. Resolveu que o fim – a sociedade sem classes – estava certo e devia ser considerado imutável, mas o meio estava errado e exigia urgente alteração. O sujeito da revolução não poderia ser uma massa numerosa, amorfa e indisciplinada, mas uma organização pequena, ferreamente disciplinada e adestrada na arte da luta clandestina. Um grupo de revolucionários profissionais, “poucos, mas bons”. Daquele ponto em diante, o sujeito da História passou a ser o partido, que delegaria seus poderes ao plenum, que, por sua vez, os delegaria ao presidium e este ao secretário-geral.
Posso imaginar quantos leitores, impacientes, estão a perguntar o que a minha peroração sobre a Revolução Russa tem que ver com o título deste artigo.
Ora, sabemos todos que a social-democracia pós-Bad Godesberg foi uma construção dos países mais adiantados da Europa, convencidos de que era mais prático realizar o fim a que almejavam no marco das democracias ocidentais, e mais ainda no quadro da recuperação econômica ensejada pela ajuda americana, consubstanciada no Plano Marshall. Naquela prosperidade que subitamente lhes pareceu eterna, os dirigentes social-democratas dos países referidos elaboraram o que o historiador designou como a “narrativa social-democrática”: a eliminação da pobreza e uma progressiva universalização do bem-estar por meio do gasto público. Recordo que essa visão fora já elaborada por Thomas Marshall em seu clássico Democracia, Cidadania e Classe Social, obra de 1951. Nesse trabalho, repensando a evolução histórica da Europa, Marshall argumentou que o essencial era converter aspirações e desejos que já se esboçavam na prática em direitos, ou seja, em pleitos respaldados pelo direito positivo.
Alguém contestará que esse, também no Brasil, é o fim desejado? Não é exatamente esse o ideal ou programa que os constituintes de 1988 consideraram adequado para melhor integrar e pacificar a sociedade brasileira?
O problema, evidentemente, são os meios, e aqui vale a pena ser taxativo: no Brasil, os ideais da social-democracia só podem ser realizados com base em instrumentos que tendem ao liberalismo. Por meio de um novo leninismo, ou cedendo a um intervencionismo rombudo como o posto em prática pela sra. Rousseff, isso certamente não será possível. Os erros de Lula e Dilma foram palmares: escolheram os “campeões” empresariais, mas nem sequer encomendaram tornozeleiras em quantidade suficiente. Eis aqui o trágico, o grotesco equívoco dos soi-disant desenvolvimentistas brasileiros. Não compreendem que estão torcendo o nariz justamente para os instrumentos de que dispomos para repor o País nos trilhos: equilíbrio fiscal, abertura da economia, privatizações, forte investimento estrangeiro na infraestrutura, ênfase no mérito, uma reforma enérgica na administração pública, apoio à pequena e média empresa e, last but not least, uma revolução educacional.
Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da Consultoria Augurium, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, é autor do livro ‘Liberais e antiliberais’ (COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)
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