Não é todos os dias que um ensaio filosófico inicia uma polêmica na mídia. Aconteceu.
A professora Rebecca Tuvel escreveu na revista "Hypatia" um artigo sobre o "transracialismo" ("In Defense of Transracialism"). Explico: será que ser negro é apenas uma questão de ancestralidade ou de pigmentação da pele? Ou qualquer um pode reclamar-se como negro?
A título de exemplo, a prof. Tuvel relembra a odisseia de Rachel Dolezal, a ativista americana dos direitos dos negros que sempre se apresentou como negra –e que foi denunciada pelos pais (ambos brancos) como uma farsante.
Ninguém gostou, muito menos a comunidade negra que acusou Dolezal de loucura, desrespeito, oportunismo. Em sua defesa, Dolezal afirmou que a "negritude" não é uma questão hereditária ou biológica. É uma questão mental, emocional, existencial. E cultural: ela, branca, via-se como negra. E como negra desejava ser tratada.
Para a prof. Tuvel, as reivindicações dos "transracialistas" devem ser respeitadas. Exatamente como respeitamos a comunidade transgênero na luta contra o preconceito. Não é legítimo condenar Rachel Dolezal e aplaudir Caitlyn Jenner.
Foi o dilúvio e o jornal "The New York Times" tem relatado esse dilúvio. Modestamente, gostaria de me declarar do lado da prof. Tuvel. O seu ensaio, aliás, é um exemplo de rigor lógico para qualquer candidato a filósofo.
Eis o argumento central: nas questões transgêneras, falamos de indivíduos que não se identificam com o sexo que lhes foi imposto. Se alguém nasceu com um pênis ou uma vagina, isso não determina que ele seja homem ou mulher. É perfeitamente possível que o portador do pênis se sinta mulher ou que a portadora de uma vagina se sinta homem, independentemente de optar por uma cirurgia de mudança de sexo.
Como defende Rebecca Tuvel, a sociedade soube evoluir da mera caução biológica (pênis = homem; vagina = mulher) para acomodar um valor mais importante: a autoidentificação de gênero.
Essa mesma evolução deve ser promovida nas questões "transraciais". Afirmar que um "negro" depende da ancestralidade ou da pigmentação de pele é repetir o erro do determinismo biológico. Mais importante que esse determinismo é a "autoidentificação racial".
Claro que Rebecca Tuvel sabe que o respeito devido aos "transraciais" não depende apenas da autoidentificação. É necessário o reconhecimento social dessa nova identidade. É por isso que a prof. Tuvel relembra o utilitarismo de John Stuart Mill e o seu "princípio do dano": o Estado só deve interferir na liberdade de alguém se houver dano para terceiros. Será que a autoidentificação racial ou de gênero provoca esse dano?
A minha resposta é negativa. E só lamento que Rebecca Tuvel não tenha sido mais ambiciosa no combate à intolerância. Por que falar de sexismo ou racismo deixando de lado, por exemplo, o especismo? Falo da arrogância humana de nos considerarmos superiores ao restante reino animal.
É essa arrogância que explica a soberba com que olhamos para a "disforia de espécie": se uma pessoa acredita ser uma galinha, por que não reconhecer essa identidade?
Os intolerantes dirão que um ser humano não põe ovos nem tem a fisiologia (e a fisionomia) de uma galinha. Mas essa crítica apenas repete o velho preconceito biológico que interessa combater. É mais importante não ter nascido com penas –ou respeitar uma autoidentificação que é do domínio interior? E que, seguindo Stuart Mill, em princípio não causa dano a terceiros?
Digo "em princípio" porque admito que certos comportamentos –bicadas em público, cenas íntimas com outros galos (ou galinhas)– podem ser problemáticos para a harmonia social. Mas quem sou eu –e quem somos nós– para condenar um indivíduo que cacareje e viva pacificamente na sua capoeira? Mais do que tolerar, é preciso respeitar e reconhecer.
Há precisamente 40 anos, Woody Allen filmou "Annie Hall". Na cena final, a conhecida piada: um homem vai ao médico e diz que o irmão pensa que é uma galinha. O médico aconselha internamento para o irmão. O homem responde: "Eu até internava, doutor, mas preciso dos ovos."
Francamente: até quando vamos rir dessa piada?
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