ESTADÃO - 14/05
O Brasil, já dizia Fernando Henrique Cardoso não é um país pobre, é um país injusto
Este é o terceiro artigo com o título acima, tentativa de contribuir para um borgiano “não impossível diálogo” sobre três fatores operando no longo prazo, que exercem pressão estrutural por maiores gastos públicos no Brasil. Como não haverá possibilidade de atender a todas as demandas derivadas dessa pressão, o País terá de fazer algo a que não esteve muito acostumado: fazer escolhas e definir prioridades.
O primeiro artigo procurou tratar do pano de fundo: os processos de transição demográfica e de urbanização que nos transformaram, em poucas décadas, na terceira maior democracia de massas urbanas do mundo – chegaremos às eleições de outubro de 2018 com quase 150 milhões de eleitores em princípio aptos a votar. O Brasil é um case study de relevância e interesse global.
O segundo artigo tratou das exigências e demandas por mais e melhor infraestrutura “física” (energia, transporte, comunicações, portos), num País que tende a ver nossas flagrantes necessidades e carências nessas áreas como exigindo respostas e ações “intensivas em Estado”. E são, não para o Estado investidor direto, mas para um Estado eficaz e competente na criação de regras estáveis e previsíveis, que reduzam riscos e o custo de capital para investidores privados.
O presente artigo trata de outra forma de pressão estrutural que também exige respostas em termos de ações de governos, que são as demandas e exigências por infraestrutura “humana” (educação, saúde, segurança), incluídas as legítimas pressões pela redução da pobreza absoluta e da excessiva desigualdade na distribuição de renda e de oportunidades – que são, também, tidas como exigindo intensa ação do Estado.
Há razões históricas para tais demandas: em seu imperdível livro Cidadania no Brasil: o Longo Caminho, José Murilo de Carvalho nota que o processo de constituição da nossa cidadania seguiu lógica inversa à do caso clássico, da sequência inglesa, “na qual as liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um Judiciário cada vez mais independente do Executivo. Com base no exercício das liberdades, expandiram-se os direitos políticos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela ação dos partidos e do Congresso, votaram-se os direitos sociais, postos em prática pelo Executivo”.
Aqui, no Brasil, mostra José Murilo, “primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão de direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular”. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra: a maior expansão do direito de voto deu-se em outro período ditatorial. Finalmente, vieram os direitos civis.
O autor nota que seria tolo achar que só há um caminho para a cidadania plena. Seu ponto é que caminhos diferentes afetam o produto final, o tipo de cidadão e de democracia que se gera. Isso é particularmente verdade quando há inversão da sequência. Das várias consequências dessa hipótese, tão bem analisadas no livro, uma é particularmente relevante para nosso debate atual e nossos futuros possíveis. É a que afirma que a “sequência inversa” favoreceu uma visão corporativista dos interesses coletivos desde pelo menos o Estado Novo e da clara influência que sobre ele exerceram, por exemplo, os corporativismos italiano e alemão nos anos 1930. Como nota o autor, “o grande êxito de Vargas indica que sua política atingiu um ponto sensível da cultura nacional”.
Com a “distribuição dos benefícios sociais por cooptação sucessiva de categorias de trabalhadores, os benefícios sociais não eram considerados como direitos de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. A sociedade passou a se organizar para garantir os direitos e privilégios distribuídos pelo Estado”. E este passou a ser um distribuidor de recursos públicos, sempre escassos relativamente à miríade de demandas com que se defronta.
O formal discurso de posse (1/1/2011) da ex-presidente Dilma Rousseff é mais que ilustrativo: “O Brasil optou, ao longo de sua História, por construir um estado provedor de serviços básicos e de previdência social pública. Isso significa custos elevados para toda a sociedade”. Preço a pagar pela “garantia do alento da aposentadoria para todos, e de serviços de saúde e educação universais”.
A esse respeito vale relembrar o que denomino “paradoxo de Bacha-Schwartzman”, os quais assim o expressaram: “Temos, entre nós, uma peculiar, mas disseminada interpretação dos princípios constitucionais da universalidade e da igualdade, segundo a qual as desigualdades dos benefícios sociais não devem ser corrigidas com o redirecionamento dos gastos públicos, mas sim pela expansão dos gastos e a extensão, para os demais, dos benefícios já conquistados por uma minoria [dos 20% mais ‘ricos’] que são considerados direitos adquiridos”. E que geram expectativas – fadadas a ser frustradas – de direitos por adquirir.
Os autores notam, corretamente, que “é claro que não há dinheiro suficiente para tal expansão”, que boa parte dos gastos sociais já beneficia os 20% mais bem situados (que detêm quase 60% da renda total) e que para poder praticar uma política social que beneficie os 80% mais “pobres” é preciso confrontar os privilégios dos 20% “mais ricos”, o que significa enfrentar as corporações que representam seus interesses. O Brasil, já dizia FHC, não é um país pobre, é um país injusto.
Mas tentativas de lidar com multifacetadas injustiças “en nuestra America” (aí incluído o Brasil) desfraldando a bandeira do “gasto (público) é vida” não costumam dar certo. Ao contrário. E com frequência acabam por impor custos significativos àqueles que pretendiam favorecer, em termos da recessão e do desemprego que acabam causando.
Concluo relembrando uma observação crucial de José Guilherme Merquior: “O bom combate não é contra o Estado, é contra certas formas (espúrias) de apropriação do Estado”.
Mães, feliz dia!
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC. E-mail: malan@estadao.com
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