ESTADÃO - 02/11
Não dá para ignorar a necessidade de mudanças no sistema financeiro brasileiro
Entre o vigoroso debate sobre a PEC dos gastos e a acalorada discussão vindoura sobre a reforma da Previdência, pouco se fala a respeito de outra reforma de sumária importância para o Brasil: a reforma do sistema financeiro. Não se trata apenas do eterno debate sobre o nível anômalo dos juros brasileiros, mas de idiossincrasias que tornam o Brasil um país para lá de esquisito, país onde a política monetária não apenas opera com escopo bastante reduzido, mas traz consequências pouco conhecidas sobre papel distributivo de natureza única, verdadeira guariroba brasileira.
Por diversas vezes discorri sobre o papel do crédito subsidiado e do crédito direcionado no Brasil. O crédito direcionado é aquele destinado a setores e programas específicos, sem que se tenha clareza sobre tais decisões alocativas. Entre 2008, antes da crise internacional, e 2015, o crédito direcionado como proporção do crédito total aumentou de uns 30% para cerca de 50%. Ou seja, metade do crédito oferecido hoje no País por grandes bancos públicos e privados não é o que economistas chamam de “crédito livre”, isto é, recursos que não estão sujeitos a algum tipo de normativa.
O crédito direcionado custa cerca de 25% do crédito dito livre, ou seja, quem o recebe obtém baita vantagem sobre os reles mortais que a ele não têm acesso. Quem o recebe? De modo geral, são as grandes empresas no setor de serviços, de energia e de produtos manufaturados, além da parte que se destina à agricultura. De onde vêm os recursos para financiar a benesse? Cerca da metade provém diretamente do governo – ou, dito de outra forma, apenas em 2015 fluxos destinados ao financiamento do crédito subsidiado custaram 3,5% da receita do governo. Enquanto o governo compromete parte relevante da gestão fiscal com o financiamento do crédito subsidiado, uns 40% dos recursos para financiá-lo saem indiretamente do bolso do trabalhador. Como? Na forma de subremuneração dos fundos de poupança forçada como o FGTS – enquanto o FGTS rende, em média, uns 7% ao ano ao trabalhador, títulos do governo atrelados à Selic rendem mais ou menos o dobro.
O crédito subsidiado, portanto, cria distorções na alocação de recursos, na política fiscal, no custo do crédito, na remuneração indireta dos fundos de poupança forçada do trabalhador. Todas essas distorções aumentaram sobremaneira desde 2008 sem que a sociedade tenha conta do que isso significa. No que diz respeito ao investimento, diversos estudos mostram que o aumento do crédito subsidiado entre 2008 e 2015 não teve qualquer efeito sobre as taxas de investimento. Ou seja, a maior disponibilidade de dinheiro barato para grandes empresas em nada contribuiu para o aumento da produtividade e do crescimento da economia. O que se viu foi, em grande medida, empresas com acesso a outras fontes de crédito reduzindo despesas financeiras sem alavancar os benefícios crescentes de tamanha generosidade.
No que diz respeito à política monetária, não é de hoje que insisto nos efeitos danosos do crédito direcionado. Se há tanto crédito dessa natureza em circulação, a Selic não age sobre parte relevante do mercado de crédito brasileiro. O resultado disso é que, para alcançar determinado resultado inflacionário, é preciso elevar os juros muito mais do que se fosse o mercado de crédito brasileiro menos idiossincrático. Novamente, insisto: esse problema aumentou imensamente após 2008.
A esquisitice da política monetária brasileira ante a existência do crédito subsidiado e direcionado não se restringe à sua relativa perda de potência. Como o crédito direcionado favorece setores específicos, parcialmente protegidos das ações do Banco Central, a política monetária acaba levando a impactos redistributivos a partir da elevação do custo do crédito. Dito de outra maneira, se o setor X recebe crédito direcionado e o setor Y não o recebe, quem sofrerá mais com a elevação das taxas de empréstimo derivadas de um aperto monetário será o setor Y. Esse impacto será tão maior quanto mais espaço ocupar o crédito subsidiado no sistema financeiro.
Em tempos de reformas e apelos à transparência, urge repensar o papel do crédito direcionado no Brasil. Não dá mais para ignorar a necessidade de uma profunda reforma no sistema financeiro brasileiro.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Um comentário:
Há um pequeno equívoco, o rendimento do FGTS é de 3 por cento ao não é não a média mencionada neste artigo
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