segunda-feira, setembro 12, 2016

Trinta anos de expansão fiscal - FABIO GIAMBIAGI

O Globo - 12/09

O Brasil não teve o mesmo cuidado com a questão fiscal, por ocasião da redemocratização, que outros países tiveram nos anos 80


Superada a discussão acerca do impeachment, as atenções se voltam para os planos do governo do presidente Michel Temer. Nesses planos, destaca-se a proposta de adoção de um teto para a evolução do gasto público. Para o leitor entender a importância do tema, vou procurar dividir com ele um pouco do que aprendi ao longo de quase três décadas de convívio com o tema das finanças públicas.

Comecei a me debruçar sobre os assuntos fiscais em 1987. Desde a primeira metade dos anos 80, a qualidade das estatísticas evoluiu muito favoravelmente. Naquela época, a ignorância acerca do que estava acontecendo efetivamente no dia a dia das contas era dramática. Um dos problemas de quem lida com estatísticas fiscais é que algumas séries que existiam na época foram descontinuadas, enquanto que outras séries novas não podem retroagir até uma época distante. Feita a ressalva de que as estatísticas atuais são, em linhas gerais, muito melhores que as daquela época, para algumas coisas é preciso se valer da combinação de séries.

Nas décadas de 1970, 1980 e parte da década de 1990, dava-se muita importância aos dados fiscais das contas nacionais. Embora fossem divulgados com muita defasagem e sofressem algumas distorções resultantes da opacidade que a alta inflação trazia para a interpretação do verdadeiro significado dos valores nominais, eles permitiam contar uma história com começo, meio e fim. Nesse sentido, uma série que gosto de citar, cuidadosamente compilada por Ricardo Varsano de 1970 a 1994, mostra que a despesa primária — isto é, sem considerar os juros da dívida pública — da soma das três esferas de governo — união, estados e municípios — e que em 1984 era de 21,7 % do PIB aumentou para nada menos que 29,2 % do PIB em 1991, salto esse de 7,5 % do PIB dividido fundamentalmente no aumento de salários e encargos (mais 2,9 % do PIB), consumo de bens e serviços (mais 3,1 % do PIB) e investimentos (mais 1,3 % do PIB).

Essa série perdeu relevância com o passar dos anos, em parte por mudanças metodológicas na apuração das contas nacionais mas, principalmente, pela maior demanda — e oferta — de dados fiscais de alta frequência, compilados inicialmente pela Secretaria de Política Econômica (SPE) e, desde 1997, pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Embora a divulgação institucional em bases regulares (mensais) e com apenas um mês de defasagem, na internet, caiba a esta última desde aquele ano, para os “dinossauros” como este modesto servidor, que acompanharam a “pré-história” dessas estatísticas, é possível fazer um encadeamento com a série antiga da SPE, que tem aproximadamente os mesmos critérios que a sistemática atual. Dessa forma, é possível construir uma estatística fiscal 1991/2015, com o único inconveniente de que se refere exclusivamente ao governo central, sem abranger os estados nem os municípios. De qualquer forma, como em 2015 o governo central foi responsável por quase 85 % do déficit público total do setor público, tem-se aí a principal explicação para o que tem acontecido com a maior parte das contas públicas.

Essa série indica que a despesa primária do governo central, que tinha sido de 13,7 % do PIB em 1991 — lembremos, quando o gasto já era muito maior que o de 1984! —, alcançou 23,1% do PIB em 2015, com o agravante de que este ano esse percentual continuou aumentando. Os números sugerem que o Brasil não teve o mesmo cuidado com a questão fiscal, por ocasião da redemocratização, que outros países tiveram nos anos 80, procurando conciliar o justo, correto e legítimo atendimento das demandas sociais com o cuidado com a manutenção do equilíbrio macroeconômico. Ao longo das últimas décadas, esse descompasso se traduziu, inicialmente, numa aguda pressão inflacionária e, posteriormente, na elevação da carga tributária e/ou da dívida pública. É a percepção de que este último processo não poderá se dar indefinidamente que explica e justifica a tentativa de colocar um freio à expansão das despesas. Do desfecho dessa questão dependerá a definição de que tipo de economia teremos no Brasil no futuro. Caberá ao meio político ter a sabedoria para dar às autoridades dos próximos dez a 20 anos os elementos que lhes permitam cumprir com a regra que se pretende aprovar agora.


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