ESTADÃO - 20/09
No caso de Lula, até mesmo ao leigo parece estar evidente a prática de crimes
É ofensivo à inteligência e ao sentimento nacional de justiça imaginar que a condenação de um criminoso de colarinho branco depende unicamente de provas materiais, tais como impressão digital ou fotografias. Esse tipo de crime é praticado às escondidas, nas sombras e sob proteção de cúmplices bem localizados no serviço público. Por isso mesmo é quase impossível encontrar impressões digitais, filmes ou fotos.
Vigora no sistema no sistema processual brasileiro o princípio do livre convencimento, segundo o qual compete ao juiz da causa valorar com ampla liberdade os elementos de prova constantes dos autos, desde que o faça motivadamente. Nesse panorama, para a condenação de conduta criminosa o juiz pode valer-se também de indícios, ou seja, de circunstâncias conhecidas e aparentes, capazes de demonstrar a existência do crime. Em verdade, os indícios estão claramente previstos pelo Código de Processo Penal, no capítulo das provas.
Neste momento tormentoso vivido pelo ex-presidente Lula, é compreensível que seus advogados e defensores entoem descontentamento com a denúncia pública feita contra ele, alegando ausência de prova material. Na falta de argumentos que envolvam o mérito, compreende-se que usem tal estratégia de defesa, mas dificilmente convencerão o juiz quanto à ausência de provas, uma vez que são muito expressivos os indícios da conduta criminosa.
O Código de Processo Penal, em seu artigo 239, prevê com toda a clareza que se considera indício a circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias. Essa indução autorizada pela lei às vezes é tormentosa, pois alguns defendem não ser possível condenação se não há prova material. Mas cristalizou-se progressivamente o entendimento de que nem sempre é possível obter diretamente a prova do crime e, por isso, torna-se necessária a captação dos indícios, por intermédio dos quais se chega à verdade real.
A denúncia que o Ministério Público faz contra Lula, causando impacto tão forte no País, está fundamentada num conjunto enorme e expressivo de indícios e circunstâncias, que permitem, pela indução prevista no artigo 239, concluir que houve mesmo crime, e dos mais graves.
Muitos juízes entendem que a eficácia dos indícios não é menor que a da prova direta. Quando bem estabelecidos, e bem evidentes, eles podem adquirir importância predominante e decisiva, permitindo fixar condenações que a sociedade exige.
No caso de Lula, até mesmo ao leigo parece estar evidente a prática de crimes. Quando do episódio do mensalão, prevaleceram condenações brandas, defendidas vitoriosamente pelo ministro Ricardo Lewandowski, do STF, que tem um enorme coração bondoso. Graças a isso, os criminosos políticos José Dirceu, José Genoino e João Paulo Cunha foram abençoados e beneficiados por leve sentença.
Houve naquela oportunidade uma grave ofensa a cada um de nós, porque Marcos Valério, o acusado que não era político e não tinha a mesma proteção, foi mantido no cárcere. Já os políticos protegidos saíram logo.
Também naquela ocasião, embora José Dirceu fosse o braço direito de Lula (ou, quem sabe, os dois braços), prevaleceu o entendimento de que não havia prova material da participação criminosa do ex-presidente. E com isso ele, que não sabia de nada, não viu nada, não participou de nada, ficou fora da condenação.
Vê-se hoje que faltou coragem ao Ministério Público Federal para incluí-lo na denúncia, talvez ao fundamento de inexistência de impressões digitais ou de filmagem dos crimes praticados. Agora, a conduta dos promotores de Justiça do Paraná é outra e vemos que o conjunto de circunstâncias indicadoras da prática de crime autorizou a propositura de ação penal.
A propósito, o STF, por voto de Sepúlveda Pertence, já concluiu que os indícios, dado o livre convencimento do juiz, são equivalentes a qualquer outro meio de prova, pois a certeza pode provir deles. A recomendação feita na ocasião foi de que o uso dos indícios requer cautela e o nexo de causalidade, ou seja, sua conformidade com qualquer outro tipo de prova. E o paulista Frederico Marques, tantas vezes citado por sua invejável lucidez, dizia que “o valor probante dos indícios e presunções, no sistema de livre convencimento do juiz, é em tudo igual ao das provas diretas”.
Assim, por mais que os defensores de Lula se apeguem à tese enganosa de inexistência de provas, buscando, quem sabe, convencer-se a si próprios, a finalidade do processo criminal consiste em provar – e provar nada mais é do que proporcionar ao juiz a convicção sobre a existência de um fato. Isso equivale a dizer que o conjunto de circunstâncias e indícios que levaram os promotores da Lava Jato a propor a denúncia contra o ex-presidente Lula é por si só suficiente, pois permite formar um quadro de segurança compatível com a almejada verdade real.
Como o legislador brasileiro erigiu os indícios como meio de prova, não se pode concluir que a ausência de determinada prova material desejável impeça o juiz de manifestar seu livre convencimento na forma de um decreto condenatório, apoiado exclusivamente em prova indiciária. Isso é o que se pode prever quanto ao processo judicial contra o ex-presidente, lembrando, como curiosidade, que ele próprio ao manifestar-se em entrevista de mais de uma hora, transmitida ao vivo pelas televisões, em momento algum fez defesa do mérito, ou seja, que não deixou seus amigos mais próximos roubar à vontade dinheiro nosso, com o claro propósito não só de encher os bolsos, mas de levar avante um projeto populista dos piores.
*Desembargador aposentado do TJSP, foi secretário estadual de justiça.
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