O GLOBO - 10/04
O governo é como um El Cid ao contrário: morto em vida
Com ou sem impeachment, o governo Dilma acabou, concorda a maioria dos analistas. Por que?
Uma primeira resposta nos leva ao karma do que o debate tem chamado de estelionato eleitoral. A sociedade brasileira, onde códigos de honra e a primazia das relações pessoais estão muito presentes, não perdoa rupturas de contrato.
Mas isso também ocorreu no segundo governo FHC e as condições da governabilidade foram mantidas, mesmo com a popularidade presidencial em níveis muito baixos.
Uma segunda resposta nos remete à incompetência política. De fato, numa reeleição em que a vitória só ocorreu devido ao apoio da maior parte do PMDB, o primeiro movimento político do governo foi trair esse partido e tentar promover defecções na direção de uma nova legenda partidária.
Daí em diante, a cada esquina ou encruzilhada o governo invariavelmente optou pela escolha errada, quase sempre em tributo a uma vocação autoritária e hegemonista. Mas não basta para explicar algo tão inusitado como um governo que é como El Cid ao contrário: morto em vida.
Uma terceira resposta aponta para a Lava-Jato. Nossa “mãos limpas” sacode a estrutura corrompida de um poder político que já estava na lona em termos da legitimidade de sua representatividade junto aos cidadãos. Isso abala qualquer força política no governo. Muito mais uma que está no poder há 13 anos e envolvida até as tripas com a corrupção.
Por que o governo Dilma morreu? Pela combinação dos três vetores? Um governo zumbi é um fenômeno mais raro do que governos que caem ou renunciam, de modo que minha intuição ainda não se satisfaz, apesar de a combinação dessas três ondas já assegurar uma ressaca gigante.
A quarta resposta é a tsunami: a maior queda do PIB desde 1930/31. Além das óbvias responsabilidades do governo nas causas da profundidade da crise, a isso se soma essa absurda incapacidade de implementar uma política econômica crível.
Em parte é o preço pago pelo “bolchevismo sem projeto", obrigado a assumir que ser uma “metamorfose ambulante” é virtude. E pela tolerância da sociedade brasileira com narrativas incongruentes.
Cem por cento dos que estiveram na manifestação “não vai ter golpe” são radicalmente contra a política econômica do governo e denunciam um golpe motivado por forças que “não aceitaram” a derrota eleitoral e querem mudar a política econômica do governo.
O advogado geral da União diz no Congresso Nacional que há um golpe em andamento e, em vez de recomendar ao governo a decretação do estado de sítio e a convocação das Forças Armadas para defender a democracia e a Constituição, diz que vai recorrer ao STF.
Há limites para o delírio. Ele funciona quando não há dificuldades a enfrentar, mas quando a sociedade e a nação necessitam, em uma situação muito grave, de governo, o descompasso entre a realidade e a narrativa delirante dos líderes da força política no poder gera paralisia.
Sérgio Besserman Vianna é economista
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