O drama do país é a criação de dois grupos que defendem ideias complementares, mas que estão postas como inimigas. Um defende avanço social. O outro, a estabilização. O primeiro crê que só houve progresso social em governos petistas. O outro, que só o PSDB sabe manter a inflação e as contas em ordem. Um acredita que conquistas sociais vêm antes do equilíbrio fiscal. O outro não vê vantagens de certos gastos.
Essa armadilha em que o debate entrou simplifica as várias complexidades do país. O Brasil não é simples, não cabe em reducionismos. É como se quem fizesse parte da ideia de que a economia deve permanecer estável e os gastos públicos sob controle tivesse que abandonar o sonho de viver num país com menos desigualdades, mais justo, com um processo virtuoso de inclusão de negros, pobres e mais poder para as mulheres. E tudo se passa como se um grupo político fosse o dono absoluto destas conquistas sociais e outro fosse o dono do processo que nos levou a derrotar a hiperinflação.
A briga pró e contra o impeachment aprisionou esses sonhos coletivos e a cada cidadão é dada a chance de fazer apenas uma escolha nesses dois conjuntos de virtudes. Quem acompanha a cena brasileira sabe que a vitória sobre a hiperinflação tornou possível a engenharia de políticas públicas eficazes no combate à pobreza, desigualdade e exclusão. Há continuidade.
As estatísticas mostram que a inclusão de negros na universidade começa a aumentar em 1998, e o processo ganhou força no governo do PT e com a ajuda das cotas. As ações afirmativas começaram a ser postas em prática na virada do século, mas ganharam mais intensidade no governo Lula. Apesar de todo o debate que houve na época sobre as cotas — no qual fiquei a favor dessa política — elas acabaram sendo aprovadas por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal. O apoio às cotas foi mais amplo do que se supõe vendo o maniqueísmo político-partidário de hoje.
As políticas de transferências de renda também começaram antes dos governos do PT e ganharam celeridade durante esses governos. Elas não poderiam acontecer sem a estabilização da economia, e seus efeitos são anulados, em parte, pela recessão, pelo desemprego e pela inflação que se vive atualmente. O Índice de Gini, que mede a desigualdade, começou a cair em 2001 e continuou em queda até que parou de cair e começou a subir nos últimos anos de crise econômica.
A crise surgiu do desprezo do atual governo pelos fundamentos deste círculo virtuoso, ao ser leniente no controle da inflação e expandir os gastos públicos de forma irresponsável. Criam-se então contradições. O governo que comandou parte fundamental dos avanços sociais está reduzindo a renda e o emprego por ter produzido a pior recessão da nossa história. Por outro lado, o partido que fez as reformas para controlar os gastos públicos e comandou a derrubada da hiperinflação defende projetos no Congresso que aumentam gastos e derrubam as reformas que fez. Estão os dois lados ofendendo suas próprias histórias, traindo seus legados.
A polarização política vai convencendo as pessoas que só existem dois lados. Se você é contra o governo tem que ser contra as políticas sociais e os inegáveis avanços dos últimos anos. Se você é a favor do governo tem que achar que inflação subindo e gastos escalando não têm importância alguma. Certas despesas do governo beneficiaram alguns grupos privilegiados. Parte da dívida pública foi feita para dar empréstimos subsidiados aos grandes grupos empresariais ou conceder benefícios fiscais. Agora que o cofre ficou vazio, os mesmos grupos são contra o governo. A Fiesp e CNI que estavam como mariposas circulando em torno da luz do governo, agora botam o bloco na rua. Ou o pato.
A grande luta agora é para o Brasil dar um novo avanço e combater a corrupção. É disso que se trata. Pode-se ser a favor da estabilização, dos avanços sociais, e apoiar o combate à corrupção que está ocorrendo no Brasil. A luta é contra a corrupção. Não se pode ficar no dilema de revogar conquistas passadas. O complexo e árduo momento atual está tirando pedaços da inteligência coletiva do país. Estamos ficando prisioneiros de falsos dilemas.
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