ESTADÃO - 17/01
Balmaceda é um livro de Joaquim Nabuco de 1895, que tem sua origem em artigos publicados no Jornal do Commercio da então capital federal. Examina o que foi a crise política no Chile proveniente da conflitiva presidência de José Manuel Balmaceda, que levou a uma guerra civil e culminou no suicídio do presidente.
Na bibliografia de Nabuco, esse livro não se situa no mesmo plano de Minha Formação, um dos pontos altos da narrativa autobiográfica brasileira, de Um Estadista do Império, que oferece o melhor acesso ao entendimento das instituições políticas do Brasil de dom Pedro II, ou de O Abolicionismo, que faz do autor, ao examinar o legado da escravidão, um dos grandes pensadores do Brasil.
Mas Balmaceda é uma relevante obra de análise política na avaliação de autores como Evaldo Cabral de Mello e Francisco Iglesias. Em momentos de crise política aguda em países da América do Sul, ler Balmaceda, que mereceu em 2008 apurada reedição com a chancela da Editora Cosac Naify, traz ensinamentos úteis.
São múltiplos os ângulos a partir dos quais sua relevância e seu significado podem ser examinados. Trata-se de obra que transcende as circunstâncias e os embates da época da sua elaboração e publicação, ligados à crítica política dos primeiros anos da República e aos desmandos autoritários da Presidência Floriano Peixoto.
Quero chamar a atenção para dois pontos relevantes: a importância atribuída por Nabuco à América Latina para a política externa brasileira, como um dos desdobramentos da implantação da República, e a sua aguda análise dos desafios da governabilidade em nossa região.
Na maior parte do século 19, desde a independência, o Brasil foi o diferente nas Américas: um Império em meio a Repúblicas; uma grande massa territorial de fala portuguesa, que permaneceu unida num mundo hispânico que se fragmentava, tendo no Hemisfério Norte os Estados Unidos expandindo-se territorialmente. Foi a República que sublinhou a relevância da inserção do Brasil nas Américas.
Dizia nesse sentido o Manifesto Republicano de 1870: “Somos da América e queremos ser americanos”. Essa é uma das razões por que o advento da República trouxe uma “americanização” da política externa brasileira.
Daí a importância do conhecimento da América Latina para o Brasil, indicada com clareza e precisão nas páginas finais de Balmaceda: “O interesse que antes já me inspiravam as coisas sul-americanas aumentou naturalmente depois da Revolução de 15 de Novembro. Desde então começamos a fazer parte de um sistema político mais vasto... Desse modo o observador brasileiro, para ter ideia exata da direção que levamos, é obrigado a estudar a marcha do Continente, a auscultar o murmúrio, a pulsação continental”.
A República, no âmbito da “pulsação continental”, ao trazer a negação dos critérios de organização do espaço público do Império, inaugurou um período de dilatada incerteza política, que explica a entropia de seus anos iniciais, caracterizados pelo desafio da governabilidade.
Quando Nabuco escreveu Balmaceda, o caminho para lidar com a governabilidade, apontado pelos adeptos do positivismo de Augusto Comte, era a ideia de “ditadura republicana” advogada por Júlio de Castilhos, tendo como lastro um demiúrgico cientificismo político. Esse é o pano de fundo brasileiro do capítulo IV do livro, intitulado Ensaio Geral da Ditadura, que examina por que Balmaceda em 1890 “propunha praticamente a onipotência do Poder Executivo e a degradação do Congresso”.
Nabuco discute, nessa conjuntura, o espírito de reforma, que combina conservação e aperfeiçoamento, contrastando-o com o radicalismo dos que buscavam impor a realidade, em nome da “ciência”, o caminho único de uma chave teórica. O ímpeto do “metodismo científico” foi uma inspiração propulsora da ação de Balmaceda. Levou-o a “introduzir insidiosamente no esplêndido organismo chileno o gérmen do militarismo político” e dele fez “um caráter imperioso em que o mando absoluto embotara todas as outras faculdades”, inclusive o discernimento do bom juízo político. Dele fez um integrante da família política dos que “lavram suas utopias na sociedade a tiro de canhão quando é preciso”.
“Os despotismos”, aponta Nabuco com precisão, “não se defendem contando tudo ao país e contando com ele, defendem-se nas trevas com o dinheiro, com o terror e com o silêncio.” Nesse contexto, antecipa o tema contemporâneo da cláusula democrática na nossa região. Afirma, em observação que transcende o que se está passando na Venezuela: “Os chefes de Estado têm o direito de defender a sua autoridade legal – não era o caso de Balmaceda –, mas esse direito não vai ao ponto de acumular por toda parte ruínas sobre ruínas, de arrasar a sociedade, de proscrever a opinião oposta, de privar a nação do direito de se inclinar para o lado contrário e dos meios de gritar pela paz”.
As citações acima retêm plena atualidade política. São as de um pensador que prenuncia o que veio a ser no âmbito da esquerda o debate político reforma x revolução. Para esse debate, a História do século 20, como uma “era de extremos”, deu as duríssimas respostas dos desastres humanos inspirados pelos demiurgos e profetas do caminho único da mudança por métodos revolucionários. Antecipa, igualmente, os riscos na nossa região da tendência à “tábula rasa” dos fundacionismos qualificados como “bolivarianos”.
Esclarece como reformista o desafio da governabilidade democrática em nossa região. Este é o do fazer, e não o do azabumbar do marketing político do falar. E o de levar adiante políticas públicas consistentes, que permitam democraticamente avaliar os governantes pelo resultado da sua administração, vale dizer pelo inventário de que encontraram ao assumirem as responsabilidades do poder e o que deixaram para seus sucessores.
* CELSO LAFER É PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
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