O GLOBO - 15/10
Não se pode dizer que as pessoas sempre foram tolerantes. Ocorre que a roubalheira ficava bem escondida
O combate à corrupção é um amplo movimento global. Comportamentos antes admitidos ou deixados para lá — os políticos são assim mesmo, lembram-se? — agora são alvo de radical intolerância. O político italiano Ignazio Marino, um homem de esquerda, com as bandeiras progressistas, incluindo o casamento gay, perdeu a prefeitura de Roma quando foram exibidas contas elevadas de restaurante, que ele espetava no cofre municipal. Alguns dirão que foi exagero, mas a bronca agora é assim. Depois de tanta tolerância e impunidade, o pêndulo foi para o outro lado.
Há grandes e pequenas corrupções. Nas grandes, com frequência se trata de roubo em obras públicas, tecnologia dominada mundialmente. As pequenas vão desde contas de restaurante até gastos das primeiras-damas em cidades interioranas. E sem contar a história da Fifa. Na França, por exemplo, a imprensa está muito ocupada com o Mundial de Rúgbi e com as eliminatórias para a Eurocopa. Mas não passa dia sem notícia do caso Michel Platini, o presidente da Uefa, associação de futebol da Europa, candidatíssimo a moralizar a Fifa até ser apanhado recebendo um pagamento por consultoria mal explicada.
Aliás, esta é outra modalidade frequente: consultorias nunca feitas, mas formalizadas em contrato para lavar o dinheiro.
Como se chegou a este ponto? Na verdade, não se pode dizer que as pessoas sempre foram tolerantes com a corrupção. Ocorre que a roubalheira ficava bem escondida. Isso acabou com duas providências básicas: leis exigindo a abertura, a transparência das contas públicas, regras bem aproveitadas pela imprensa; e novas leis para o sistema financeiro que praticamente acabaram com o sigilo das contas bancárias.
Tanto é assim que o combate à corrupção é mais forte, e bem-sucedido, nos países democráticos, com imprensa livre. Na Rússia e na Turquia, por exemplo, denúncias têm dado cadeia para jornalistas nos últimos dias.
Outro fator crucial é a globalização do sistema financeiro. No primeiro momento, essa internacionalização ajudou os corruptos a esconder dinheiro, pulando com as contas de país para país. Agora, as autoridades fazem o caminho inverso, seguindo o dinheiro pelo mundo afora.
Ainda bem.
VIAJANDO POR AÍ
E por falar em globalização, tem Uber em São Petersburgo, lá no alto da Rússia. É um enorme conforto para o estrangeiro. Você entra no aplicativo e a página aparece na sua língua, exatamente no formato em que foi feito o registro original. Elimina estresse com o idioma, mapas, sistema de táxis, tarifas, câmbio etc.
Já a internet engasga. Perguntei aqui e ali, e parece que é o seguinte: uma mistura de problemas técnicos — redes de alcance limitado — com alguma censura. Acontecem umas coisas estranhas quando se entra seguido em várias páginas de noticiário. A conexão cai e, às vezes, o seu próprio notebook simplesmente apaga.
Já em Paris, a internet é bala, mas não tem Uber. No país das corporações, os taxistas espalharam protestos, e o aplicativo foi proibido por lei, como está acontecendo no Rio e em São Paulo. Azar para quem vem para a Olimpíada.
Por outro lado, tanto em Paris quanto em São Petersburgo o sistema de compra de ingressos para espetáculos é totalmente globalizado. É como se fosse o Uber do entretenimento. Pode-se fazer tudo pela internet, da compra ao pagamento no cartão. Não precisa nem emitir o bilhete — você passa na catraca com o código de barras recebido por e-mail no seu celular.
Tirante para os pequenos gastos, nem é preciso sacar dinheiro local. Vai tudo no cartão.
Muita gente reclama que as cidades ficaram muito iguais — e essa é mesmo a primeira impressão. Dos aeroportos aos carros, as lojas, os restaurantes — tudo parece familiar. Ainda mais quando se vê todo mundo com celular na mão. No Museu Hermitage, por exemplo, estão à disposição aplicativos da Apple e do Google pelos quais o visitante faz seu roteiro.
Não facilita só para o estrangeiro. Essa globalização dos serviços é amigável para todos.
Não elimina as identidades locais, muito menos as culturais.
Dois pequenos mas interessantes exemplos. São Petersburgo é conservadora. O Teatro Mikhailovsky apresenta uma “Tosca” e um “Lago dos cisnes” absolutamente clássicos. E na ópera, as legendas aparecem apenas em russo.
Já na Ópera da Bastilha, as legendas estão em inglês e, claro, francês. E apresenta um “Don Giovanni” contemporâneo. Os cantores são verdadeiros atores, estão de terno e gravata — aqueles ternos moderninhos, de paletó curto e calça apertada. O cenário os coloca numa Paris de hoje, com prédios de apartamento e o conquistador fugindo de elevador.
Na famosa ária em que Leporello, o empregado de Don Giovanni, relata a série de conquistas de seu patrão, ele saca um celular para ler o número de mulheres seduzidas. E mais: há uma rápida cena de nu frontal de uma das moças.
A globalização é assim também: entrega o clássico e o revolucionário, no caso, ambos espetáculos de classe mundial.
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