O GLOBO - 29/05
Temos a responsabilidade pelo jeito como os amigos e familiares enxergam quem a gente ama.
Nós é que definimos a olhar de nossos próximos para o bem e para o mal.
Estava em papo à toa com Mariana e destacava o quanto fui feliz com sua mãe enquanto namorávamos na universidade. Não havia partilhado com a filha as minhas experiências do meu início universitário.
- Como, pai? Ela é totalmente diferente de você: objetiva e seca.
- Não, Mariana, ela usava muitas metáforas, ela cantava Maria Bethânia, escrevia cartas de amor.
- Não é possível, você está falando de alguém que não conheço.
Fui obrigado a citar duas ou três expressões que a sua mãe usava comigo. E ela se calou durante o resto do trajeto.
Dois dias depois, Mariana descarrega uma pesada artilharia de mensagens em meu celular, com aspas, prints e citações
- Pai, revi meus diálogos com a mãe e encontrei várias expressões poéticas e sensíveis, comparações estranhas, eu só olhava um lado de sua personalidade e não a enxergava inteira.
Eu não contive o contentamento, o riso de quem deixou sua filha alforriada das minhas limitações (que ela tenha as próprias limitações, não as minhas).
Ajudei, inconscientemente, a estabelecer uma imagem de sua mãe fria, casmurra e distante. Nem de um modo direto, mas por poucas e pobres observações sobre desentendimentos caseiros, tipo "era de se imaginar" ou "ela sempre foi assim e jamais será diferente". Sentenças que não permitiam que a minha filha entendesse a complexidade e a pluralidade da figura materna. Reduzia a minha ex a uma caricatura que me interessava, e que acabava beneficiando às minhas qualidades.
Se o marido é odiado pelas suas amigas, se sua esposa é recusada pela sua família, se um colega é malvisto pela sua turma no trabalho, é você que edificou a indisposição por sucessivas queixas. Não foi obra do destino e uma manifestação espontânea dos acontecimentos. Ninguém foi desmascarado, nós que impomos as máscaras verbais naquele que criticamos de acordo com as circunstâncias, pelo medo de não ser amado, pela desconfiança e pela insegurança. Nós é que maquiamos o cadáver ou borramos os seus traços em plena juventude.
Erramos o peso da boca: ao desabafar, julgamos e condenamos. E não há como ser justo na catarse. Catarse é faxina, é colocar para fora sem nenhuma hierarquia de importância.
Tanto que na paixão desaparecemos para os amigos para ressurgir apenas quando irrompe a primeira decepção. E os amigos ficam conhecendo o rol de frustrações amorosas, e não o que gerou o encantamento.
Sempre temos a chance de consertar as nossas distorções e avaliações de terceiros, de retroceder no inquérito e suspender as censuras. Até porque as pessoas mudam, e também mudam a nossa perspectiva e as nossas prioridades.
É só chamar para uma conversa os envolvidos e desfazer os condicionamentos com a simples poção mágica de palavras "eu me enganei" e demonstrar o quanto aquela companhia vem sendo fundamental em nossa trajetória e rotina.
Ler é interpretar, viver é escrever por cima. Somos marcadores de textos dos defeitos e virtudes do outro.
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