O ESTADO DE S. PAULO - 19/03
Até agora, o pior erro de comunicação do governo federal foi o documento interno do governo federal sobre os erros de comunicação dele mesmo, o governo federal. Na terça-feira à tarde, o texto que circulava no Palácio do Planalto foi noticiado com exclusividade no portal estadao.com.br. Ontem a peça virou manchete deste jornal. Não era para menos. A reportagem de Valmar Hupsel Filho e Ricardo Galhardo destrincha um texto que, em mais de um sentido, é uma bomba. Elaborado dentro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), segundo apuraram os repórteres, o documento não explica e não resolve a desorientação do Planalto em matéria de se entender com a sociedade. Em vez disso, piora tudo.
São 1.904 palavras que se estendem por cinco páginas de papel ofício. Todas erradas. Erram no diagnóstico, nas proposições e nos fundamentos. Na visão ali exposta, as falhas de comunicação dos anos Dilma Rousseff teriam sido técnicas: a desativação de robôs que atuavam nas redes sociais em defesa do governo, o distanciamento dos “blogueiros progressistas”, a falta de publicidade oficial e outros desacertos da mesma linha. Em síntese, o governo teria errado porque não lançou mão das ferramentas “certas”, nas doses cavalares “certas”, para convencer a cidadania errada de que ele, governo, é que está certo.
Por que o diagnóstico é um erro em si mesmo? Porque a principal deficiência do poder que aí está, quando o assunto é comunicação, não tem nada que ver com mais ou menos propaganda na televisão, não tem que ver com a falta de cumplicidade de ativistas das redes sociais. O que existe é uma incapacidade anterior, constitutiva e persistente. Pelo menos desde 2011 (a coisa não era tão grave nos tempos de Lula), a gigantesca limitação comunicativa do Palácio do Planalto é política, não técnica. Em termos menos vagos, é de natureza auricular. O governo não escuta ninguém - e todo mundo que está rouco de tanto avisar sabe disso muito bem. O governo não escuta a oposição, não escuta os parlamentares, não escuta o PT e não escuta os conselhos do ex-presidente Lula. Que não escute também a sociedade não surpreende nem um pouco.
Escutar, nesse caso, significa ouvir. E ouvir não significa concordar com tudo, mas significa levar em consideração, acolher, incorporar, agregar, somar, dividir o poder para multiplicar a representatividade, o engajamento. Como não faz nada disso (e como faz muito o oposto disso), falta credibilidade aos convites que, agora, os ministros começam a fazer para o “diálogo”. Puxemos pela memória. Dilma também falou em “diálogo” logo ao vencer o segundo turno, no dia 26 de outubro, com 51,6% dos votos. Mas que diálogo? Na noite daquele domingo usou o microfone por quase meia hora e não pronunciou uma única vez o nome de Aécio Neves, seu adversário. Não dirigiu a ele uma única palavra de agradecimento. Não o cumprimentou. Ora, essa, quem ela queria ouvir para dialogar?
Instrumentos de comunicação o governo hoje tem de sobra. Paga-os a peso de ouro. As somas são bilionárias. Não foi por falta de máquina de propaganda que a classe média foi às ruas no domingo. Foram passeatas de direita? Foram, e daí? Isso as torna menos legítimas e menos expressivas, por acaso? A indignação, além de legítima, é generalizada - e ela não se deve à escassez de blogueiros amigos ou à ausência de superproduções publicitárias na TV. O erro está mais embaixo. E mais acima. O erro está em todo lugar. É ubíquo. O erro é de postura. Você não vai acreditar, mas hoje, no Palácio do Planalto, nem as paredes têm ouvidos.
Sem dúvida, devemos ler com reservas o tal documento da Secom. Ele não é um pronunciamento solene, não é uma portaria, não foi publicado no Diário Oficial. Não passa de papel interno, cuja circulação deveria ser reservada. Por outro lado, em nenhum outro lugar a índole palaciana se expressou com tanta crueza, de modo tão desabrido. E até o dia de ontem, no meio da tarde, ele não foi desautorizado. Mesmo não sendo oficial, ele é verossímil, autêntico. Os seus parágrafos trazem cada uma das impressões digitais dos estrategistas que animam esse continental desastre de comunicação que se instalou na Presidência da República. Tudo ali explode como numa inacreditável confissão de culpa. E, nesse caso, culpa não apenas pelos tais erros cometidos, mas principalmente culpa por expor de modo tão cristalino um pensamento tão obscuro, tão bruto.
Vejamos um trecho: “Não importa quantos panelaços eles façam. É preciso consolidar o núcleo de comunicação estatal, juntando numa mesma coordenação Voz do Brasil, sites, Twitter e Facebook dos ministérios, Facebook da Dilma e Agência Brasil”.
Note bem o pronome eles. Quem são mesmo “eles”? Como é possível que, a esta altura da evolução da democracia brasileira, um servidor público chame de “eles” os brasileiros que fazem panelaço? Que governo é esse que quer operar na base do “nós contra eles”? O governo não deveria ser de todos os brasileiros? Que um partido pense assim é compreensível, mas o governo?
No mesmo trecho, o emprego da expressão “comunicação estatal” é igualmente perturbador. Se o Estado, nos termos da Constituição, deve ser apartidário e impessoal, como é que a “comunicação estatal” pode ser posta a serviço desse sombrio combate ideológico contra “eles”? Lembremos que “eles” são cidadãos brasileiros, como eu e você. (Fora isso, é deplorável, ofensivo, ver a Agência Brasil reduzida a munição partidária na guerra do “nós contra eles”.)
“Não será fácil virar o jogo”, conclui o texto. Não mesmo. Mais fácil será o jogo virar o governo, quer dizer, virar a cabeça do governo. Quem sabe Dilma se toque e vire o seu governo na direção da mentalidade democrática e do diálogo verdadeiro. Os estrategistas da surdez que nos perdoem, mas essa crise não é uma partida de futebol.
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