O Estado de S. Paulo - 29/03
Na definição de Kenneth Rogoff, o câmbio é um preço esquizofrênico. Quando falamos em câmbio real estamos nos referindo a um preço relativo - entre os bens comercializáveis e domésticos -, e quando falamos em câmbio nominal estamos nos referindo ao preço de um ativo financeiro. As movimentações recentes do real com relação ao dólar americano são fruto tanto das forças que alteram o câmbio real, buscando reduzir o déficit nas contas correntes, quanto das que o movem como o preço de um ativo, dando saltos em resposta a variações nas expectativas. Na prática, essas duas forças ocorrem juntas, e para entender o que pode se passar é preciso entendê-las separadamente.
A primeira força do lado real é a tendência à valorização do dólar. O que importa não é se o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) elevará a taxa de juros mais cedo ou mais tarde, e sim que o crescimento econômico dos Estados Unidos é sustentável e mais forte do que o crescimento de Europa e Japão, que são grandes no mercado financeiro mundial. Os EUA não precisam mais de estímulos monetários, tendo o Fed já cessado as compras de ativos financeiros, preparando-se para começar a elevação da taxa de juros. O contrário ocorre com Europa e Japão, que ainda estão elevando a dose de estímulos monetários. A consequência é que os yields dos ativos financeiros nos Estados Unidos superam os de Europa e Japão, atraindo capitais que levam ao fortalecimento do dólar.
O futuro dirá se a valorização do dólar será mais intensa ou menos intensa do que nos dois ciclos de fortalecimento ocorridos desde os anos 80. Mas é inegável que há uma tendência à valorização, diante da qual todas as demais moedas, inclusive o real, se depreciam em relação ao dólar. Ocorre que para reduzir o déficit brasileiro nas contas correntes o real terá de se depreciar com relação à cesta de moedas, isto é, mais do que as demais moedas em relação ao dólar. Lembremos que essa cesta inclui o euro, que é a moeda de países cuja participação no comércio brasileiro é bem maior do que a dos Estados Unidos, e cuja depreciação com relação ao dólar vem se acentuando por causa da ação do Banco Central Europeu (BCE).
Um segundo conjunto de forças é representado pelos preços internacionais de commodities e pelo crescimento do comércio mundial. Como a moeda de transação internacional das commodities é o dólar, seu fortalecimento pressiona para baixo os preços internacionais das commodities, e essa tendência se acentua com a desaceleração do crescimento da China. Em adição, depois da crise internacional cresceu o protecionismo, contribuindo para forte desaceleração do crescimento do valor em dólares e em quantum das exportações mundiais. Assim, o Brasil não pode mais contar com a "bonança eterna" dos preços de commodities e da ampliação do comércio mundial, vendo-se obrigado a ajustar o seu déficit em contas correntes com uma maior depreciação do câmbio real.
Quando em 2011 e 2012 os déficits nas contas correntes atingiam US$ 50 bilhões por ano, o Brasil tinha investimentos estrangeiros diretos em torno de US$ 65 bilhões, podendo acumular reservas mesmo sem contar com o ingresso de outros capitais. Atualmente, o déficit nas contas correntes se situa em torno de US$ 90 bilhões, com os investimentos estrangeiros diretos flutuando em torno de US$ 60 bilhões. É verdade que, com a depreciação cambial, o déficit nas contas correntes tende a se reduzir, mas é também verdade que a recessão em que estamos entrando reduz os ingressos em investimentos estrangeiros diretos. A aritmética do equilíbrio no balanço de pagamentos mostra que não somente o País é hoje dependente dos ingressos de portfólio de renda fixa, como continuará dependente nos próximos trimestres.
Um otimista exclamaria que estamos salvos. Afinal, as elevadas taxas de juros no Brasil devem atrair ingressos em renda fixa que ajudam a financiar o nosso déficit, ainda que ele permaneça elevado. A falha no raciocínio é que o cálculo dos investidores não se baseia apenas no diferencial entre os juros no Brasil e no resto do mundo, mas no excesso desse diferencial sobre o risco Brasil. Para um dado diferencial de taxa de juros - não importa quão alto seja - os ingressos em renda fixa declinam quando o risco Brasil se eleva. A prova disso é a enorme correlação positiva entre o câmbio nominal e as cotações do CDS brasileiro. O gráfico anexo superpõe essas duas séries com base em dados diários. Mesmo os mais céticos com relação à mensagem das evidências empíricas terão de reconhecer que uma elevação dos riscos leva à depreciação do real, porque encolhe os ingressos e/ou acelera as saídas dos investimentos em renda fixa.
A pergunta seguinte é: por que variam as cotações do CDS brasileiro? Não há uma única causa. Certamente existirão alguns dispostos a defender sanguineamente que o aumento recente das cotações do CDS é por causa apenas e tão somente ao escândalo da Petrobrás, e que o risco cairá tão logo aquela companhia publique o seu balanço. Não nego que essa é uma força. Mas afirmo que não é a única. Mesmo que Levy entregue neste ano o que prometeu - um superávit de 1,2% do PIB -, este ainda é insuficiente para levar a relação dívida/PIB a uma trajetória descendente. Levy terá de colocar em ação um programa de reformas que reduza a taxa real de juros e eleve o crescimento do PIB potencial. Se tiver sucesso nessa segunda fase de seu programa, talvez tenha sucesso em começar a reduzir a relação dívida/PIB com um superávit primário de apenas 2% do PIB, prometido para 2016. Mas se isso não ocorrer valerá mais a aritmética de Arminio Fraga que, em entrevista recente, afirmou que nas condições atuais (taxa real de juros de 6% ao ano, e crescimento do PIB potencial próximo de 1% ao ano) o superávit primário teria de se elevar para 3% do PIB. É obvio que não precisamos apenas do cumprimento da meta de 1,2% do PIB. São necessários: um aumento do esforço fiscal nos próximos anos; e o sucesso na implementação de um ciclo de reformas, que reduza a taxa real de juros e faça o País voltar a crescer.
Em 2015, o Brasil enfrentará uma recessão, e não haverá alívio na política fiscal em 2016. O custo dessa saga seria menor se o governo não estivesse politicamente fragilizado, mas a popularidade da presidente despencou, e o PT não tem mais a força que no passado tinha no Congresso, com o poder pendendo para o PMDB. Este, por seu turno, tem dado claras demonstrações de que somente está disposto a apoiar o governo caso este se disponha a dividir com ele o poder. Não se trata de um ministério aqui ou a presidência de uma estatal acolá. Trata-se de uma divisão muito mais ambiciosa de poder, com a queda do poder de Dilma e do PT dentro do governo. Políticos diferem de empresários, que maximizam os lucros de suas empresas. Políticos maximizam o poder, e se têm de pagar o ônus de um ajuste social e economicamente custoso, querem o bônus do aumento de sua fatia de comando.
Se o câmbio não tivesse essa incômoda característica de se comportar como o preço de um ativo, tudo seria mais simples. Mas não é isso que ocorre no mundo real. O caso mais benigno é aquele no qual Dilma se decida por dividir o poder com o PMDB, adquirindo maior grau de governabilidade. Não fugirá nem da inflação alta nem da recessão, mas possivelmente reduzirá o overshooting cambial, evitando o custo de uma inflação ainda maior. No extremo oposto está o caso em que o impasse político leve ao aumento dos riscos, com uma depreciação cambial e uma inflação maiores, o que ao lado da recessão reduz ainda mais o apoio político ao governo, fechando-se um círculo vicioso.
Há quem se orgulhe que o papel dos economistas não é relevante, e que o centro do palco deveria ser dado aos políticos. Agora os políticos estão no centro do palco. A nós resta observar os resultados.
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