O ESTADO DE S.PAULO 05/02
A habitual complexidade dos tributos encerra também uma aura de mistérios, que, por sua vez, constituem um território generoso para fabulações.
Thomas Piketty, economista francês, converteu-se em pouco tempo em astro midiático, por força do retumbante sucesso editorial de O Capital no Século XXI. Trata-se de uma análise da renda e da desigualdade na sociedade contemporânea, recheada de oportunas remissões literárias e fundada numa coleção formidável de estatísticas e fatos históricos. O merecido sucesso vai, por ironia, concorrer para o aumento das desigualdades, por causa da fortuna que o autor irá amealhar com conferências e vendas do livro.
O que mais impressiona em Piketty é sua insistência em propor, como remédio para as desigualdades, uma confiscatória tributação das rendas do capital e das heranças, em escala mundial. Não se conhecem os comentários da Coreia do Norte e do Estado Islâmico sobre a proposta, mas entre os especialistas, ressalvados os vinculados a cegos compromissos ideológicos, houve unânime rejeição, por tratar-se de uma tese insubsistente e inviável.
A respeito da proposta, bem caberia o comentário feito por Wolfgang Pauli (1900-1958), austríaco agraciado com o Prêmio Nobel de Física, ao compulsar um trabalho de um colega: "Sequer está errado".
Para aplacar as críticas, Piketty reage afirmando que as propostas visam tão somente a provocar o debate. Poderia ter sido mais parcimonioso.
Na esteira de Piketty, de quando em quando, surgem teses que pretendem mitigar o problema das desigualdades no Brasil por meio de tributos.
Os autores dessas teses, de fato, superestimam o poder dos tributos e subestimam a imaginação dos planejadores tributários, num mundo globalizado, com grande mobilidade de pessoas, empresas e capitais.
Tributos, quando muito, podem repercutir, incidentalmente, sobre desigualdades, cuja compreensão envolve inúmeras outras variáveis, como educação, saúde, proteção social, nível da atividade econômica, etc.
De mais a mais, é necessário perquirir os fundamentos das teses, não raro fundadas em clichês dos quais resultam teorias ingênuas (axiomáticas), que se comprometem essencialmente com premissas e consistência, mas não necessariamente com a realidade.
Um clichê recorrente é a presunção de que são regressivos (injustos) os sistemas tributários em que a tributação do consumo prevalece sobre a renda. Essa hipótese pode ser verdadeira nos sistemas tributários em que o consumo admite uma ou poucas alíquotas e a tributação da renda é efetivamente progressiva, consideradas suas alíquotas, base de cálculo e isenções.
Negadas as premissas, qualquer avaliação quanto à justiça fiscal de um sistema tributário só pode ser feita com uma análise da situação específica.
No Brasil, por exemplo, o consumo admite sobreposição de impostos (ICMS e IPI), cada um deles com características muito peculiares, sem falar da Cide-Combustíveis. O ICMS, que pretendia, originalmente, ser a segunda experiência, no âmbito internacional, de imposto sobre valor agregado findou sendo um tributo sui generis, em crise de identidade. Afora isso, tem, ao que se presume, mais de 40 alíquotas efetivas. E o IPI em nada se compara aos impostos especiais sobre o consumo, em geral incidentes sobre poucos produtos, como bebidas, tabaco e combustíveis.
Não há razões, portanto, para, aprioristicamente, concluir que a tributação sobre o consumo, no Brasil, é regressiva. Aliás, há muito já se discute a tributação progressiva do consumo.
É comum, também, incluir na tributação do consumo o PIS e a Cofins. Tal classificação é uma espantosa excentricidade, pois a base de cálculo dessas contribuições, no regime cumulativo, é idêntica à do Imposto de Renda e, no regime não cumulativo, se aproxima do Imposto de Renda, em nada se assemelhando ao IPI ou ao ICMS.
A rigor, jamais se fez uma avaliação da justiça fiscal no sistema tributário brasileiro sem o concurso de clichês e muito menos de sua repercussão sobre as iniquidades sociais.
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