A politização do tema, no entanto, serve para mostrar que o debate eleitoral nem sempre engrandece seus participantes
Os conselheiros de agências reguladoras possuem um mandato fixo. Isso significa que, se o presidente da República quiser substituir alguma dessas pessoas (que ele mesmo escolheu) antes do fim de seu termo, teria que submeter seu desejo a uma votação no Senado. Assim como conduz sabatinas e, ao fim, autoriza a nomeação dos indicados, o Senado também deve ser consultado no caso de demissão antes do encerramento do mandato.
A única “agência reguladora” onde os dirigentes não têm mandato fixo é o Banco Central do Brasil.
Em todos os outros casos, os mandatos servem para proteger os diretores da influência política de seus regulados, geralmente monopólios e invariavelmente potentados econômicos, e assegurar a integridade técnica de decisões que devem transcender os interesses de um governo e alinhar-se com os interesses maiores e difusos na população afetada pelo serviço.
É claro que o mesmo vale para o BC, ou deveria valer, pois é de interesse da população manter os responsáveis pela condução da moeda protegidos tanto das pressões dos bancos quanto dos conflitos de interesse com o Tesouro.
Este conflito reside no simples fato que o BC dispõe de uma máquina de pintar papel que pode ser usada para o mal, pelo próprio controlador da instituição, interessado em pagar suas contas com papel pintado, pensando fazer o bem, mas produzindo inflação, ou seja, tributando a população menos favorecida sem passar pelo rito legislativo próprio para o aumento de impostos.
O mesmo vale quando o controlador resolve quebrar um banco público a fim de assegurar uma eleição, como num caso célebre ocorrido em um estado da federação, e uma tentação permanente.
É dever do BC evitar esses incidentes, e para isso o dirigente pode ser forçado a contrariar o seu acionista controlador, em nome de um bem maior, quando se configurar o abuso de poder de controle. A legitimidade conferida pelas urnas não faz do presidente uma encarnação do interesse público, mas apenas um custodiante deste, e por tempo determinado e dentro de limites, como em qualquer democracia.
Temos aqui um problema clássico de governança. O BC não tem minoritários, mas possui cerca de 180 milhões de “preferencialistas”, que são os “acionistas” sem direito a voto que carregam papéis ao portador, emitidos em pequenas denominações pelo BC, de aceitação obrigatória fixada em lei, cujo valor é fixado livremente no comércio. Quem zela pelo preferencialista?
O mandato ajuda a resolver o conflito de interesse, mas não é tudo. É importante, por exemplo, a exclusão do Tesouro do comitê que decide sobre juros, e de ministros gastadores do Conselho Monetário Nacional.
Pois bem, é disso que se trata a independência do BC, mandatos fixos, junto com impedimentos (restrições para recrutar no sistema bancário) e quarentena (vedação temporária a trabalhar no sistema financeiro depois de exercer cargo de direção no BC).
O Senado nunca teve maiores restrições ao tema, pelo contrário: sempre houve contrariedade com o fato de que é chamado a sabatinar e aprovar, mas não é consultado na hora de demitir. Talvez o assunto já pudesse ter sido fixado em lei há tempos. Só não foi porque é matéria de lei complementar, debaixo do artigo 192 da Constituição, e até a Emenda Constitucional 40, de 2003, não era possível fazer uma lei complementar para o tópico específico dos mandatos sem regulamentar todos os outros assuntos mencionados no artigo 192.
Desde então, o caminho está aberto, alguns projetos já andaram, mas não houve interesse no tema, e a principal explicação para isso é que ninguém acredita que alguma transformação espetacular vá se operar por conta dos mandatos, pois, na prática, é mais ou menos o que já vem ocorrendo.
A politização do tema, no entanto, serve para mostrar que o debate eleitoral nem sempre engrandece seus participantes. A propaganda governamental afirmando que a independência equivale a entregar o BC aos banqueiros e a tirar comida da mesa do trabalhador, sem dúvida, é um dos momentos mais lamentáveis de todas as campanhas dos últimos tempos.
Foram anos para o Banco Central do Brasil construir sua credibilidade ao vencer a hiperinflação, devolver ao Brasil uma moeda digna e manter a inflação sob controle, graças ao fato de ter se comportado de forma independente, conforme determinado pelos presidentes Fernando Henrique e Lula.
Esse acervo pode ser destruído rapidamente quando o próprio governo afirma em rede nacional de TV, em inserções repetidas, que a independência significa a captura pelos bancos e prejuízo ao trabalhador. Não se poderia imaginar maior desserviço à construção institucional da moeda.
É de se presumir que, em um governo que pensa assim, a presidente é quem manda na política monetária, de modo que fica ainda mais deslocada a queixa-crime proposta pela procuradoria do BC contra um economista, ex-diretor da casa, que acusou a instituição de “subserviente” e de trabalhar mal. A propaganda e as declarações da presidente servem como confissão para a primeira acusação. A segunda, como o episódio ajudou a aclarar, é matéria de opinião e não de direito penal.
De forma não menos equivocada, também aparece o argumento segundo o qual os mandatos aos dirigentes do Banco Central subtrairiam poder das autoridades eleitas, do presidente e do Congresso, a favor de burocratas, o que é uma falácia muito comum nesse debate.
Para começar, os ditos burocratas são escolhidos pelo presidente (como ministros e secretários) e aprovados pelo Congresso, um rito comum para o exercício de diversas funções de estado. Não se concebe que haja eleições para a Anatel ou para o BC, bem como para promotor ou para a magistratura. Tampouco que esses cargos tenham que ser exercidos por parlamentares, e por indicados pelos partidos políticos, ou que tenham seus titulares escolhidos em assembleias de conselhos populares ou de representantes da sociedade civil.
O fato é que há uma prática internacional solidamente estabelecida e consagrada sobre independência do BC. Por isso, e também pela percepção de que o Brasil estaria apenas formalizando o que já praticava há vários anos, a independência do BC vinha se tornando um tema banal, que ia acabar formalizado por gravidade.
Quem ouvia o presidente Lula falar do assunto tinha a sensação de que era um assunto pacificado, mais simbólico que prático, e de certa relevância apenas para um público especializado, de modo que ficava guardado como uma espécie de “carta aos brasileiros”, versão 2.0, em caso de necessidade. Foi mais ou menos assim que o assunto reapareceu, pela manifestação de Marina Silva, mas ninguém poderia imaginar a catastrófica resposta da campanha oficial. Em duas semanas, a evolução das instituições monetárias brasileiras regrediu uma década ou mais.
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