O ESTADÃO - 30/05
No último mês de janeiro tive a oportunidade de assistir a um espetáculo democrático em Paris. Num sábado, indo para um ponto de ônibus, vi um comunicado da companhia avisando que no dia seguinte, a partir das 14 horas, haveria um desvio das linhas que passavam por ali em razão de manifestações (“manif”, como eles dizem), mas a passeata seguiria por avenidas servidas pelo metrô. No dia seguinte, sem me dar conta, fui almoçar num restaurante no trajeto e vi a manifestação.
Era uma passeata de – segundo os organizadores – 200 mil pessoas, feita com aviso prévio à autoridade, num domingo, para prejudicar menos as pessoas, e sobre linhas do metrô, para não impedir a livre locomoção dos não manifestantes. E o principal: tinha povo, uma massa humana capaz de levar governantes e legisladores a pensar duas vezes no assunto.
Na década de 1980 o governo Margaret Thatcher enviou ao Parlamento inglês um projeto de lei que ficou conhecido como dos “cidadãos de segunda classe”. Pelo projeto, somente teria direito de fixar residência na ilha quem lá tivesse nascido, não os que haviam nascido nas colônias. Pois bem, os “cidadãos de segunda classe” convocaram manifestação para um domingo, dentro do Hyde Park, e levaram para lá 1 milhão de pessoas. Com esse número expressivo de gente, na segunda-feira o governo retirou o projeto e nunca mais falou nisso. Mais um exemplo de manifestação que mostra força popular e não atrapalha a vida das pessoas em geral.
Um dos piores restolhos do entulho autoritário é essa ideia generalizada de que democracia é um regime no qual não é necessário cumprir a lei, porque cada um é “livre” para fazer o que bem entender, pouco se importando se isso vai ou não violar direitos dos outros.
Logo após o 25 de Abril, que livrou os portugueses de uma ditadura muito mais longa que a nossa, contava-se uma piada de português (eles também contam de brasileiro, de modo que esse jogo empata). Um sujeito desembarcou no aeroporto de Lisboa e tomou um táxi para o hotel. Na chegada o motorista cobrou o triplo do que o taxímetro marcava e se iniciou uma discussão.
Um policial veio ver do que se tratava e o taxista explicou: “Este é um país livre e eu cobro quanto eu quero”. O guarda virou-se para o passageiro e disse: “O gajo tem razão, este é um país livre”. O passageiro retrucou: “Ah, é um país livre? Então eu só pago se quiser”. E foi a vez de o agente dizer ao taxista: “O gajo aí também tem razão”. Se isso fosse verdade, chegaríamos à conclusão de que a democracia é um regime em que é impossível viver.
Mas não é nada disso. Um Estado Democrático de Direito baseia-se, fundamentalmente, no respeito aos direitos de todos, estabelecendo um governo da maioria que é obrigado a proteger a minoria. É um regime em que a lei garante a todos os seus direitos, que devem ser sempre observados.
Claro que é sempre garantido o direito de protesto e manifestação, dentro de certos limites impostos pelos direitos alheios.
Vamos começar com o mais simples, que é a questão dos mascarados. Já ouvi pessoas dizendo que a polícia não pode deter um mascarado, nem impedi-lo de usar máscara, pois a lei não prevê que esse fato seja crime. Calma lá! A polícia não existe somente para reprimir crimes, mas também para preveni-los. O que diz a Constituição? “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (artigo 5.º, inciso IV). Ora, como pode alguém arrogar-se o direito de violar a Constituição? E por que alguém vai a manifestação usando máscara? Certamente para cometer crimes impunemente.
O assunto torna-se mais grave quando um grupinho de umas 200 pessoas (não 200 mil, como vi em Paris) resolve fechar uma artéria da cidade, frustrando o direito de ir e vir de milhões. Voltemos ao “livrinho”: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente” (artigo 5.º, inciso XVI). Ora, deixa-se de cumprir algo que a Constituição exige e as autoridades cruzam os braços, não estão nem aí!
Há mais na nossa Constituição, que é a bíblia do Estado Democrático de Direito. A propriedade e a segurança estão – ao lado da vida, da liberdade e da igualdade – entre os direitos fundamentais básicos (artigo 5.º, caput). Além disso, diz o artigo 144 que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio…”. E as autoridades assistem bovinamente à depredação de patrimônio público e privado sem exercer o poder que o direito lhes atribui para a garantia da vida social harmoniosa.
A greve é também um direito constitucionalmente assegurado, que não inclui a depredação do patrimônio alheio ou o fechamento de vias públicas.
Como escreveu o grande e saudoso professor Miguel Reale, em estudo seminal sobre filosofia do Direito Penal, de 1968, “a experiência jurídica (…) sendo sempre uma exigência de liberdade e uma constante escolha entre múltiplas alternativas, é em si mesma problemática, sendo tal problematicismo acentuado pela presença de um outro fator, não menos necessário, que é a exigência de autoridade capaz de assegurar e preservar a coexistência efetiva das liberdades e o bem-estar social” (Preliminares ao Estudo da Estrutura do Delito, destaques do autor).
Não é preciso ir à literatura jurídica para perceber isso. José Saramago o demonstra no Ensaio sobre a Cegueira, no momento em que a falta de autoridade traz o império da lei do mais forte.
Se o poder público continuar achando que dar flechada em policial faz parte da liberdade de manifestação do pensamento, este país logo se transformará em anarquia e partiremos para a desintegração social.
Nenhum comentário:
Postar um comentário