O ESTADÃO - 16/03
A luta, vista de perto, deixa ver um embate engalfinhado por espaços na estrutura governativa entre dois gigantes partidários, PMDB e PT. Sobre o primeiro se colou a pecha de fisiológico, onipresente em qualquer governo. Sobre o segundo se conta um pouco de tudo, desde a versão de que deixou de ser "vestal" para se transformar em pecador igual aos outros, ao mito de que, à moda do Criador, teria plasmado a abóbada que adorna os céus dos nossos trópicos e aberto, "pela primeira vez", a torneira da bem-aventurança, despejando felicidade em milhões de brasileiros saídos do inferno para o gozo do paraíso. Ambos são parceiros na construção da aliança que pôs Dilma Rousseff no comando da Nação.
Desde 1986, quando elegeu 22 dos 23 governadores, 260 deputados federais e 44 senadores, o PMDB tornou-se a maior organização partidária, elegendo, em pleitos seguintes, o maior número de prefeitos e as bancadas mais cheias nos Legislativos federal, estaduais e municipais. De lá para cá acumulou extraordinária capilaridade, fazendo-se presente nos rincões distantes e se tornando o pêndulo de qualquer governo.
Desde 1984, quando foi criado sob o epíteto do "socialismo democrático", que hoje se esconde sob o esparadrapo de feridas abertas pela Ação Penal 470, o PT se esforça para liderar o ranking da política. Puxando os cordões do poder pelas margens sociais, conseguiu chegar três vezes à Presidência da República e este ano busca a quarta vitória, com a qual reforçará a base do projeto mais longo (e vertical) de poder da História contemporânea: dirigir o Brasil por um tempão. Vertical na perspectiva de concentrar o poder nas próprias mãos, evitando dispersão de forças.
Vista de longe, a esganiçada contenda entre os dois atores mostra que eles não lutam apenas para conquistar espaço na Esplanada dos Ministérios (o PT comanda 17 pastas e o PMDB, apenas 5). Trata-se de algo mais abrangente e que, pouco a pouco, acirra os ânimos dos parlamentares plantados nas legendas governistas. O busílis tem nome: o projeto hegemônico do PT. O escopo pode ser assim descrito: alijar o principal parceiro, o PMDB, do centro do poder, deixá-lo à margem, transformando-o em partido médio igual aos outros; portanto, de arreio curto e sem condição de alçar voo em direção ao comando das duas Casas do Congresso Nacional, como hoje. A meta petista é eleger este ano 130 deputados federais, o maior número de governadores, a mais extensa bancada de deputados estaduais, pavimentando um gigantesco campo que servirá de base para a decolagem de candidatos a prefeito e vereador em 2016, com os quais a sigla resgataria, sob ecos triunfantes, o "volta Lula" em 2018, com direito a reprise na reeleição de 2022. O resto, SDS (Só Deus Sabe).
Hegemonia - eis o fulcro do imbróglio entre os maiores partidos políticos. O poder hegemônico engendrado pelo PT é que está em jogo. Tal estratégia começa a esquentar a peroração política. A sensação, no momento, é de que o domínio político e administrativo por uma sigla, que abre intensa polêmica, ameaça criar divisões profundas no meio da sociedade. Ortodoxos chegam a aventar a hipótese de mudança de regime e da instalação de um Estado com extensos braços intervencionistas, a par do controle dos meios de comunicação, caso os petistas consigam seu intento.
Vamos à análise. São tênues, para não dizer improváveis, alternativas que apontem para o estreitamento das colunas do nosso edifício democrático. Governos de partidos únicos, regimes totalitários, visões intervencionistas e modelagens que fecham as tubas de ressonância social são cada vez mais escassas na esfera planetária. A contemporaneidade abre-se para o respiro social e a hegemonia, ao menos nos termos do passado, não condiz com a atualidade. Hegemonia expressa domínio, força, poder de mudar, controlar e impor. Denota o predomínio de visão unilateral por um partido ou um grupo, engenharia que não condiz com o espírito de nosso tempo.
Não se divisa "o fim do poder" nas condições que Moisés Naim, editor-chefe da revista Foreign Policy, mostra em seu livro lançado em outubro, e, sim, sua degradação, seu arrefecimento. Basta enxergar a teia por onde se move a política. As crises econômicas em série, a organização das comunidades de todos os tipos, a elevação do conceito de igualdade entre gêneros, os conflitos no mundo do trabalho, a delinquência e a violência expandida nos centros urbanos, a queda dos mercados financeiros constituem, entre outros, fatores que alteram a maneira de agir dos poderes centrais. As dificuldades enfrentadas pelas administrações públicas, em todo o planeta, impõem novos paradigmas, levando os poderes a se tornar fragmentados. O palco da política está mudando. Na esteira da dispersão, antigos centros de poder perdem sua capacidade de coordenação e controle.
Os arsenais das democracias enchem-se de armas menores, mas tão eficientes como os grandes armamentos, tendo capacidade de vetar, contrapor, combater e limitar as margens de manobra dos grandes atores. Essa nova artilharia é composta e suprida por micropoderes, ajuntamentos de pessoas formados no interior de categorias profissionais, na escala dos gêneros, nas geografias regionais e no espaço das organizações intermediárias. E o que se vê? Governantes, mesmo os que detêm imenso poder, como os nossos, ancorados num modelo presidencialista de caráter imperial, enfrentam vulnerabilidades. A presidente Dilma, mesmo dispondo de formidável rolo compressor - uma base governista em torno de 350 parlamentares na Câmara -, não acaba de ver a aprovação da convocação de dez ministros?
Moisés Naim pinça um bom retrato: "A figura de Gulliver, amarrado no chão por milhares de minúsculos liliputianos, capta bem a imagem dos governos destes tempos - gigantes paralisados por uma multiplicidade de micropoderes".
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