O Estado de S.Paulo - 30/12
Nada difícil encontrar sinais contraditórios para onde quer que se olhe, no mundo e no Brasil, a confirmar que vivemos situação inédita em que não basta a navegação de cabotagem, quando acidentes geográficos familiares, ao alcance da vista, asseguram a tranquilidade do viajante. Agora, de cada um dos atores da cena pública o que se requer é a renovação ousada do repertório de conceitos e valores, de modo que, num cenário subitamente em movimento, encontros imprevistos entre tradições diferentes e até antagônicas podem descortinar modos novos de fazer política e cultura, à altura da situação que alguns definem como de "emergência antropológica", tamanhos os riscos (e as possibilidades) inerentes à atual estrutura do mundo.
Esta é toda uma época, como comumente se diz, de globalização neoliberal ou, se quisermos, de agressiva afirmação do "comunismo dos capitalistas", sob a égide dos caprichos voláteis e tempos velozes da grande finança. Uma época que pode ser lida sob a ótica da unificação contraditória do gênero humano, que deixa de ser categoria filosófico-especulativa para se tornar realidade imediatamente palpável para cada pessoa: já se observou, por exemplo, que até as doenças são globais, a exigir medidas que muitas vezes superam o poder de reação das autoridades de determinado país.
Nem tudo é perdição. Não vivemos, como diagnosticou certa esquerda de tons apocalípticos há um século diante do flagelo da guerra, a era da pecaminosidade absoluta. Indicadores confiáveis trazem a boa-nova segundo a qual, com tal processo de unificação do gênero, diminuiu consistentemente a pobreza em termos absolutos, embora as desigualdades sejam crescentes entre países e no interior dos diferentes países. Fenômeno agravado nestes últimos anos de impenitente crise, com seu cortejo dramático de desemprego estrutural, migrações massivas, tragédias econômicas que marcam o destino de milhões de pessoas.
Um bom diagnóstico, não pessimista, mas rigoroso em suas implicações, é o de que vivemos descompasso crescentemente insustentável entre a internacionalização das forças econômicas, que têm o mundo inteiro como seu teatro real, e a timidez da política - certamente, da política democrática, essa que mobiliza o interesse e a consciência de grandes massas -, cujo âmbito ainda são os Estados nacionais, relativamente impotentes para redefinir e regular correntes que superam amplamente sua capacidade de intervenção.
Esta, a realidade efetiva, para empregar expressão ao gosto de um clássico renascentista de 500 anos, completados no ano que ora finda. Inútil retornar, entre outras categorias, ao "finalismo" do comunismo do século 20, que imaginava a transição para um Estado ideal - o socialismo ou o comunismo, precisamente -, determinado pelo desenvolvimento das forças produtivas, que concretizaria, após o grande evento revolucionário, a hipótese do governo como mera administração das coisas. Uma realidade que comportaria, ainda, a supressão progressiva da mediação política, uma vez extirpadas as fontes básicas do conflito entre os homens. Para que, então, pensar o Estado, o Direito, a política - fantasmagorias destinadas a perecer paulatinamente, à medida que se aproximasse aquela imaginária e transparente realidade final da convivência humana?
Eis que descobrimos, ou redescobrimos, a ideia de que o movimento civilizatório é tudo, o fim é quase nada, ou, antes, será o que dele fizermos, em absoluta coerência com os meios de que lançarmos mão. Esquerda e direita ainda são palavras significativas na esfera pública, mas, além de palavras, devem se referir a coisas, situações, valores, classes, indivíduos. Apropriar-se, na medida do possível, dos mecanismos autonomizados que colonizam a vida dos indivíduos e lhes roubam autonomia e capacidade de escolha - essa deveria ser a tarefa fundamental das diferentes esquerdas.
Mas, assim como é um equívoco demonizar a direita - pois existem correntes moderadas e conservadoras que lutam legitimamente segundo as regras do jogo e, dentro da normal dialética democrática, não constituem retrocesso político ou social -, também não é suficiente, para a esquerda, a autocomplacência e a arrogância de se pretender, por definição, o "sal da terra". Apregoar pura e simplesmente "socialismo ou barbárie" significa cancelar, de modo míope, a tremenda realidade de que o século 20 conheceu formas bárbaras de socialismo, a seu tempo repudiadas pelas pessoas comuns às quais foram impostas.
Para onde quer que olhemos neste 2013, como dissemos, os sinais são às vezes iluminadores e às vezes, não. Por exemplo, perdemos Nelson Mandela, mas para reconstruir a esquerda a não violência é agora, e para sempre, valor estratégico. Como estratégico é compreender a política cada vez menos como coerção e cada vez mais como persuasão e convencimento mútuo. Sem abrir mão da intocável laicidade do Estado, patrimônio comum duramente conquistado, impossível ignorar, do ponto de vista da esquerda democrática, a bem-vinda presença de valores religiosos, revigorados por um pontífice que sob tantos aspectos traz à lembrança o afeto, a sabedoria e as luzes de João XXIII e seu Concílio Vaticano II - referência de diálogo entre as religiões, bem como entre religiosos e não religiosos.
Seria mesquinho reivindicar para um só lado do espectro político - qualquer que seja - o monopólio do terreno de encontro e diálogo. Ao contrário, a conquista maior consistiria em trazer para esse terreno a maior parte das forças políticas, sociais, intelectuais, sem apagar os bons motivos de diferença e divergência. Com isso aumentaríamos exponencialmente as chances de vencer os desafios da "emergência antropológica" à nossa frente. Mero desejo de um feliz 2014?
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