O GLOBO - 07/10
Governar passou a ser mudar a Carta. Um revisionismo permanente, um Legislativo avaro em boas leis, um Executivo pródigo em qualquer lei, um Judiciário que assombra o país com tantas interpretações da lei
A Constituinte foi convocada para moderar a ira social, resolver o impasse do esgotamento do modelo econômico e conduzir o país ao estado de direito. Visou a impedir que o processo político confrontasse o sistema ditatorial moribundo com o sistema civil que emergia pela via eleitoral.
A Constituinte buscou, de forma barulhenta, confusa e pelo caráter generoso e distributivista de suas ideias socioeconômicas, se harmonizar com o sentimento da sociedade. A uma época de máxima restrição seguiria outra com o máximo de direitos. Contudo, uma traição original marca até hoje o presidencialismo brasileiro dali derivado.
Com base na Constituição da ditadura, as decisões políticas relevantes foram antecipadas para esvaziar a possibilidade de mudança real via Constituinte. O país foi embriagado com eleição presidencial direta, voto do analfabeto, legalização de partidos: o novo, vestido na roupa velha; e ficamos contaminados com esse eleitoralismo sem fim onde o eleitor precisa de senha para entender o jogo jogado. Sem poder tocar na política velha, que nunca morreu, a Constituinte ousou socialmente: tentou colocar o Estado a serviço da sociedade.
Assim, o texto não começa com a definição dos poderes, mas com o rol dos direitos individuais e coletivos. Deveres do Estado para com a sociedade, prevalência do cidadão como sonha o SUS e consagra o Código de Defesa do Consumidor.
Mas a alma cidadã da Constituição é sempre traída quando vira política de governo. Governar passou a ser mudar a Constituição. Um revisionismo permanente, um Legislativo avaro em boas leis, um Executivo pródigo em qualquer lei, um Judiciário que assombra o país com tantas interpretações da lei!
O Ministério Público, nossa maior ousadia de constituintes, glamourizou-se e acha pouco o que lhe demos. Com independência institucional, sente-se árbitro da legitimidade da lei e julgador de seu conteúdo; invade doutrinariamente a competência da vida civil para resolver conflitos. Tornou-se polícia de costumes. Interpreta a Constituição — ao contrário de ser interpretado por ela — e fez-se parte da hierarquia dos três poderes em competição aberta com o Judiciário e o Executivo. Ruma para um gigantismo sem sentido, inunda o Estado com sua presença, faz-se cego à compreensão de que a sociedade também é capaz de reconhecer, respeitar, conviver e defender seus direitos.
A Constituição atual é um texto da arte de vitral. Introduziu tantos intermediários entre o povo e o Estado que levou o país à dependência civil de caráter geral como se só houvesse vida útil no Estado e suas autoridades.
Por isso a Constituição não assegurou acumulação de energia capaz de levar ao livre progresso da Nação. Grudou na sociedade, como goma arábica, tutelou a economia, paralisou a ousadia civil. Estatizou o cidadão, a arte, prosperidade, família, trabalho e a compaixão. Levou os jovens a abandonarem sonhos para serem funcionários públicos, qualquer posto ou função, para ali, concursados, remunerados, adoecerem privilegiados.
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