O GLOBO - 27/04
Chegou ao Brasil um problema que, na Europa, velho de meio século, em nosso país só as empregadas domésticas enfrentavam: como viver sem empregada, esse personagem que, dentro de casa, serve de amortecedor às tensões entre homens e mulheres confrontados às exigências do cotidiano de uma família.
Quem faz o quê na infinidade de pequenos gestos do dia a dia? Nem um nem outro. A resposta é simples: a empregada, a babá, a cuidadora. Por vezes as três tarefas em uma mesma pessoa. Baixos salários, jornadas infindáveis, condições de alojamento deploráveis, essa sequela da escravidão exigia uma abolição. A lei é bem-vinda. Abre uma dinâmica de transformação da sociedade que ainda não está visível em toda a sua profundidade e cujos desdobramentos vão muito além dos muros da casa. Vai interpelar, para além do orçamento das famílias, as contas públicas e a organização do tempo nas empresas.
Mulheres pobres conhecem bem os malabarismos que fazem para criar seus filhos quando a oferta de creches públicas é ridícula em relação à demanda e a escola de tempo integral uma promessa sempre adiada. Jovens pelas ruas são vitimas e herdeiros de um país em que suas mães foram invisíveis e impotentes. A elas não se dava resposta, apenas o conselho de que não tivessem filhos, embora cuidassem dos filhos dos outros. São elas a maior parcela da mão de obra feminina e de mulheres chefes de família.
A classe média resolvia o seu problema delegando-lhes as tarefas que, sem elas, recairiam — e vão recair — sobre as mulheres com carreiras em construção. Nossa cultura, até aqui, isentou os homens desse tipo de atividade dita subalterna. É essa classe média, cada vez mais numerosa e influente, que tem voz e é capaz de defender seus interesses, que vai colocar no debate público as relações entre o mundo do trabalho e o da família no momento em que o emprego doméstico muda de estatuto.
Essa mudança põe a nu o valor — e também o peso — da vida privada que, longe de ser um bloco homogêneo de gestos que se repetem, é uma teia de situações variadas que se tecem ao longo dos dias, envolvendo sentimentos delicados e rotinas que garantem a sobrevivência.
A família não é apenas abrigo, o lugar do sustento material. É o espaço onde somos iniciados à nossa própria humanidade. Quando a escola assume a educação formal das crianças já trabalha sobre uma imensa soma de conhecimentos práticos, gestos aprendidos, atitudes consentidas ou coibidas, agressividades domadas sem as quais seria não só inútil como impossível ensinar a ler e a escrever e a efetuar as quatro operações. Ironia: essa soma de conhecimentos muitas vezes é transmitida por uma mulher sem educação formal, que exerce junto a uma criança, que não é sua, um papel maternal. E aí reside a complexidade da relação humana imbricada ao trabalho doméstico. De modo ainda mais pungente, a relação de idosos e doentes com quem lhes cuida, testemunhas e alívio de suas fragilidades.
O Estado, de maneira imperceptível, descansava nas costas dessa mão de obra barata que velava a deficiência de uma rede institucional de creches, casas para idosos e escolas de tempo integral. A lei das domésticas rasgou o véu. O Estado doravante vai ter que devolver em serviços os impostos pagos. Essa rede institucional se torna imprescindível e inadiável, como é nos países europeus e nos Estados Unidos, onde os direitos que a lei avança não teriam sido exequíveis sem serviços públicos eficientes.
As empresas também vinham sendo poupadas pelo trabalho doméstico barato. Ele liberava o tempo que homens e mulheres não reivindicavam como fazem nos países do hemisfério norte onde a conciliação entre trabalho e vida privada define a fronteira entre atraso e modernidade. A lei das domésticas torna evidente que, em um mercado de trabalho que absorve homens e mulheres em igual proporção, a vida privada, que as empresas sempre se permitiram ignorar, impõe novos arranjos e temporalidades.
A sociedade é um sistema complexo. Não se faz contemporânea em apenas um aspecto. Não se mexe em uma variável sem que haja repercussões no todo. A conciliação da vida familiar com o mundo do trabalho entra de uma vez por todas na agenda da sociedade brasileira. Não como uma questão privada a ser debatida em cada casa, como tem sido até aqui, mas como uma questão pública que chama às suas responsabilidades, exigindo que as assumam, homens e mulheres, governantes e empregadores. Todos entoando o refrão bem conhecido das donas de casa: e agora, que a empregada foi embora?
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