FOLHA DE SP - 22/03
O público não está trocando de canal, mas de mídia. Foi-se o tempo dos 100% de ibope
QUANDO EU era pequena, sabia pela voz do Cid Moreira se era hora da janta, pela do Chico Anysio se era hora de dormir, e pelo riso do Dick Vigarista se era hora de ir para a escola. A TV, como os primeiros relógios públicos da idade média, regulava a vida dos brasileiros.
Esse fenômeno não existe mais na geração dos meus filhos. O cotidiano deles é pautado por desenhos animados e filmes, pelos realities e programas de curiosidade científica. Todos veiculados na TV paga.
Mas a TV por assinatura dá traço de audiência no Brasil. Como explicar? Pode ser que minha família faça parte de uma elite sem nenhum significado para a economia, mas sempre que olho o meu guri entretido com o computador e a TV, me pergunto se esse zero está correto.
Os "gatonets" conectam os bairros populares há tempos e nunca foram contabilizados. Para combater as redes clandestinas, comandadas por milícias organizadas, foram oferecidos contratos a um custo de R$ 30 às comunidades pacificadas do Rio de Janeiro.
Que mudança trará a legalização e subsequente inclusão da TV paga nas pesquisas?
O público não está trocando de canal, mas de mídia. Foi-se o tempo dos 100% de ibope. O número de aparelhos ligados segue uma tendência de queda, enquanto os milhares de sites de relacionamento e vídeo games on-line se multiplicam. Em um quadro tão pulverizado, o pequeno resultado tem relevância.
Antes, as empresas de telecomunicações controlavam o conteúdo e a emissão de sinal. Hoje, a telefonia detém a transmissão, enquanto as antigas emissoras se consolidam como produtoras de programação.
A TV por demanda aponta um futuro em que o espectador monta a sua própria grade. Algo já praticado na internet, onde os comerciais são destinado a um público alvo e os navegadores trocam indicações entre si. Porta dos Fundos é um fenômeno de views.
Perde-se por um lado, ganha-se por outro. Uma empresa que produz novelas, séries, programas de esporte e notícia não contará apenas com as 24 horas do dia, os sete dias da semana, ela possuirá um catálogo disponibilizado em incontáveis janelas simultâneas.
A concorrência com os importados será ainda mais dura. As dezenas de seriados americanos entram aqui pagos e com um nível de qualidade que ainda não possuímos. A TV americana está na vanguarda da cultura de massa. É experimental e popular, arriscada e bem-sucedida.
Se a ampliação do mercado não servir para fortalecer o que se faz no Brasil, serviremos apenas de pasto, não criaremos nada capaz de dialogar com o que é feito no resto do planeta.
Na contramão da ameaça estrangeira, raras multinacionais coproduzem séries brasileiras. É um modelo. Mas a maioria dos programas nacionais exibidos na TV fechada é de entrevistas, realities e alguma ficção de baixo custo. Ela ainda é um celeiro de ideias subutilizado no Brasil.
A ministra Marta Suplicy voltou atrás na decisão de incluir a TV por assinatura na lista de beneficiados do Vale-Cultura. A classe artística respirou aliviada, era uma competição desleal. Mas a proposta, não sei se consciente, ou inconscientemente, fez circular a ideia do Vale-TV e mostrou que o MinC deseja influir no setor.
Caso o faça, é preciso cuidado para que não só as duas extremidades da transação, o povo e as "über" "teles", saiam ganhando, mas também a faixa intermediária, que inclui os grandes e pequenos produtores de TV.
O modelo de atender à base e ao topo da pirâmide social, jogando o miolo para escanteio, faz parte da nova ordem econômica mundial.
Remando contra a maré, François Hollande conseguiu que o Google ressarcisse os periódicos franceses pela exibição de links de notícia nos resultados de busca. Foi firmado um acordo para aumentar a receita de publicidade on-line e criou-se um fundo de € 60 milhões (cerca de R$ 156 milhões) para fortalecer as mídias digitais.
É preciso preservar o mundo material. É ser Hollande, ou assistir, agora com a televisão, único setor cultural do país que vingou como negócio, a tragédia vivida pela música. Nela, ganharam as empresas de tecnologia e o internauta, enquanto a indústria fonográfica amargou perdas irreparáveis.
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