terça-feira, outubro 30, 2012

O mundo macunaímico da política - FERNANDO LUÍS SCHÜLER

O GLOBO - 30\10


Na língua do mercado financeiro, o custo eleitoral do mensalão já está ‘precificado’, e parece ter sido, no fim das contas, irrelevante. O PT é um intrigante caso de resiliência política



Tenho dificuldades para imaginar que outro partido, que não o PT, teria a capacidade de atravessar praticamente incólume a um julgamento como o que estamos assistindo, já em seus momentos finais, no STF. Por ampla maioria, a Suprema Corte do país, com sete de seus onze ministros indicados pelos presidentes Lula e Dilma, condenou a cúpula histórica do partido, nos termos que todos conhecemos. O processo já vai ingressando no terreno da história. Na linguagem do mercado financeiro, seu custo eleitoral já está precificado, e parece ter sido, no fim das contas, irrelevante.

Trata-se de um intrigante caso de resiliência política. Na antevéspera do julgamento, havia a expectativa de que ele funcionasse como um divisor de águas, uma espécie de redenção ética da vida publica brasileira. Ledo engano. No fim do processo eleitoral, no mundo real da política (e independentemente do gosto partidário de cada um), tudo indica que quem estará comemorando o “troco”, nas eleições, é José Dirceu, ainda que as máscaras mais vendidas no carnaval sejam as de Joaquim Barbosa.

Muita tinta ainda vai se gastar para explicar este fenômeno. Um bom ponto de partida é compreender uma distinção elementar entre o mundo da política e o mundo jurídico. No mundo jurídico, faz todo sentido a lógica brutal enunciada por Joaquim Barbosa, segundo a qual roubo é roubo, ladrão é ladrão, fatos são fatos. É a mesma lógica simples que guia a vida das pessoas, dia a dia, quando educam os seus filhos, pagam suas contas e devolvem o troco dado a mais na padaria. Ocorre que, por muitas razões, as pessoas não transferem este modelo de raciocínio para o mundo da política. Expressão maior desta dicotomia é o argumento que, em ultima instância, sustentou a defesa dos réus do mensalão: a tese segundo a qual não havia, efetivamente, nenhum criminoso entre os acusados, visto que nenhum roubara para fins pessoais, e sim meramente políticos.

O PT tem mostrado dominar à perfeição a arte de lidar neste mundo fluido da política. E o faz com duas vantagens cruciais: aparece como protagonista de uma historia contada e recontada, em nossa cultura política, segundo a qual a “esquerda” é ética e democrática, enquanto a “direita” é corrupta e autoritária. E esta, num argumento circular, define-se pelo ato de opor-se ao próprio partido. A segunda vantagem é a competência para colocar em marcha uma gigantesca operação gramsciana: um exército de intelectuais, professores, jornalistas e ativistas de todos os tipos, em geral no controle de organizações sindicais, comunitárias, estudantis e afins, reverberando os argumentos que interessam ao partido a cada momento, em uma apaixonada “guerra de posições” pela hegemonia política.

Não há dúvidas de que o julgamento do mensalão pertence à história da República. E só a ela. A desconstrução do mundo macunaímico da política, que o STF, sob a batuta de Joaquim Barbosa, produziu, simplesmente pela afirmação de fatos e valores amplamente compartilhados, não terá, ao que parece, qualquer efeito educativo perceptível em nossa vida pública, ao menos no curto prazo. Quem sabe suas lições sejam digeridas, muito lentamente, no futuro, pelos historiadores de ofício, e sirvam de aprendizado para uma nova compreensão ética da vida republicana.

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