FOLHA DE SP - 09/06
Pilatos ouviu a voz do povo, da qual se diz que é a voz de Deus. Negou, porém, a essência da democracia
O DIA santo do Corpo de Cristo, seguido pela sexta-feira, inspira a prorrogação do descanso de aulas e trabalho, mesmo nas atividades da Justiça. A possibilidade do descanso me sugeriu a leitura da obra de Gustavo Zagrebelsky "A crucificação e a democracia" (Saraiva, 155 páginas). A linha adotada pelo escritor consistiu em avaliar a conduta de Pilatos entre o clamor do povo e o conceito da verdade sabida, ao que parece trazido por sua mulher, quando teve de resolver o destino de Cristo.
O clamor, invocado nos fatos mais espetaculosos do processo criminal, é, com alguma frequência, o aproveitamento do escândalo gerado. Já era assim ao tempo do Cristo. Apenas vem ampliado ao atingir toda a população com novos meios de comunicação, cujo desenvolvimento técnico parece interminável. Não é mais a multidão diante do palácio governamental, mas todo o povo. Seu efeito possibilitou, no século 20, a implantação da ditadura nos cinco continentes, de direita e de esquerda, desde 1918, quando terminou a Primeira Guerra Mundial até 1945, ao acabar a segunda.
A narrativa de Zagrebelsky é exemplar, o que não surpreende num juiz como ele, que presidiu a Corte Constitucional da Itália, a contar da versão da Bíblia, feita em 1641, por Giovanni Diodati. Sai agora na boa tradução de Mônica de Santis, para a Saraiva. Entre Barrabás e o Cristo, o povo salvou o primeiro. Pilatos foi um democrata no sentido estrito de que ouviu a voz do povo, da qual se diz que é a voz de Deus. Negou, porém, a essência da democracia. Deixou de lado a avaliação crítica da conduta dos dois condenados, sob ameaça da crucificação.
Na narrativa dos fatos cruciais desse momento histórico, surge a entrega de Jesus para que fosse sacrificado. Daí a frase em que a voz do povo foi divinizada para justificar a punição. Zagrebelsky considera totalitária tal concepção da democracia. Vê nela a marca da "ausência de procedimentos e de garantias". Não de uma amostra da democracia, mas sim de um jogo de adulação da multidão para criar a impressão de que o caminho do poder havia dependido do povo.
Assim, tomar a expressão "a voz do povo é a voz de Deus", no contexto da condenação do Cristo, é uma insensatez, estranha à democracia crítica. Na avaliação desta é essencial, em primeiro lugar, reconhecer e saber que "todos os homens são necessariamente limitados e falíveis". A contradição é aparente. Zagrebelsky logo esclarece: "a democracia critica é fundamentada em um ponto essencial: o de que as virtudes e os defeitos de um indivíduo são também os de todos". Se for assim, há o risco de se querer predominância para os melhores, por mérito. "O ponto de referência da democracia que aspira a melhor não é, porém, um ideal verdadeiro e justo, pelo qual ela seria esmagada e, assim, irremediavelmente condenada."
Na democracia crítica, a soberania popular subsiste, mais ainda agora, ao ser negada a infalibilidade do povo e ser reconhecida a crise dos partidos políticos. Nem há certeza de que seja possível superá-la. "Na política, a mansidão, para não parecer imbecilidade, deve ser uma virtude recíproca. Se assim não for, a certa altura, antes do fim, é preciso quebrar o silêncio e agitar para não tolerar mais."
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