quarta-feira, junho 20, 2012

Aqui até governo paga imposto - PEDRO FERREIRA e RENATO FRAGELLI


Valor Econômico - 20/06


Uma peculiaridade brasileira é gerar fatos impensáveis em outros países. Nossa independência foi obra de Pedro I, um português, filho do rei de Portugal. A República foi proclamada por Deodoro da Fonseca, um marechal monarquista que fez questão de ser enterrado com as medalhas que recebera do imperador por ele deposto. A abertura política foi conduzida por Sarney, presidente do antigo PDS, o partido dos militares que sucedeu à antiga Arena.

Por ocasião da Assembleia Nacional Constituinte, devedores que haviam tomado empréstimos durante o ano do Plano Cruzado, inebriados pela ilusão de que não seriam pegos no contrapé com a volta da inflação, organizaram um movimento cujo objetivo era forçar os bancos a perdoar parte de suas dívidas. No momento da votação, coube a um deputado do partido comunista, Roberto Freire, sair em defesa dos bancos com uma emenda que restringia o benefício a um determinado valor não muito alto. Um incauto estrangeiro de passagem por Brasília perguntaria estupefato "como pode um parlamentar comunista sair em defesa de bancos que cobram juros excessivos?" Freire fora informado que os bancos privados, por serem mais ágeis que os públicos, já haviam renegociado seus créditos, de modo que a bonança recairia somente sobre os bancos públicos, isto é, sobre o contribuinte. Pensando no bem comum, Freire agiu prontamente.

Nesta semana, o ministro dos Esportes, deputado Aldo Rebelo, do mesmo partido comunista, foi homenageado em clima de festa durante a comemoração que marcou a posse do novo presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. Em seu discurso, Aldo inflamou os ruralistas com um duro discurso contra ONGs estrangeiras que lutam pela preservação do meio ambiente. O mesmo incauto estrangeiro indagaria "como pode um parlamentar comunista sair em defesa de latifundiários que desmatam abertamente?" Deixaremos ao leitor a resposta.

Mas os benefícios continuam onde sempre estiveram: baixos e muito concentrados em grandes grupos

Mais casos surpreendentes? No Brasil, o gasto com o seguro-desemprego aumenta justamente quando a taxa de desemprego cai! Em 2012 deve atingir R$ 40 bilhões. Como explicar? Fraudes? Elas existem, mas não justificam a magnitude do fenômeno. Parte da explicação está na maior formalização no mercado do trabalho que amplia o universo de trabalhadores com acesso ao seguro. Mas a causa principal são os incentivos econômicos embutidos nas regras que regem o seguro: para receber o benefício durante três meses, basta que o trabalhador comprove vínculo empregatício por no mínimo seis meses e no máximo onze meses, nos últimos 36 meses. Assim, em momentos de baixo desemprego, muitos trabalhadores forçam sua demissão para receber o seguro - e também o FGTS que lhes rende juros reais negativos -, pois não temem ficar desempregados após o término do prazo de pagamento do seguro.

Na semana passada, o Valor publicou um interessante artigo onde Ribamar Oliveira descreve as condições impostas pelos parlamentares das regiões Norte e Nordeste para aprovar a Medida Provisória 564 que criou o programa Brasil Maior e autorizou uma capitalização de R$ 100 bilhões para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Segundo seu relator, deputado Danilo Fortes (PMDB-CE), "a medida foi concebida com uma visão muito voltada para o Sudeste". O resultado da barganha parlamentar junto ao governo foi uma transferência de R$ 4 bilhões para o Banco do Nordeste do Brasil (BNB) e outra de R$ 1 bilhão para o Banco da Amazônia (Basa). Também está sendo negociada uma alteração da Lei 7.827 de modo a "conceder aos bancos administradores dos fundos constitucionais maior flexibilidade para negociar as operações que descumpram os contratos".

Conclui-se que, não apenas os empresários daquelas regiões vão ter mais recursos subsidiados para tomar no futuro, como terão facilidades na renegociação da inadimplência de recursos tomados no passado. E, diga-se de passagem, o histórico de inadimplência em relação as fundos constitucionais é mais um exemplo de "coisas que só acontecem no Brasil".

Até 2000, devido a práticas contábeis pouco ortodoxas, a taxa de inadimplência dos empréstimos do Fundo Constitucional do Nordeste (FNE) oscilava em torno de 2%. No entanto, em 2001, o Banco Central forçou o Banco do Nordeste, o administrador desse fundo, a registrar todos os empréstimos vencidos como inadimplentes, uma vez que estes estavam sendo classificados como "sob renegociação" ou sendo renovados sem qualquer pagamento. Com isto a taxa de inadimplência do FNE saltou, de um dia para o outro, para 31,5%. Isto é, um terço dos valores dos empréstimos - já altamente subsidiados - não eram realmente pagos! Aos poucos essa taxa foi sendo reduzida, mas com a "maior flexibilidade para negociar as operações que descumpram os contratos" provavelmente crescerá novamente.

O episódio acima mostra que, sobre os R$ 100 bilhões que o governo decidiu transferir ao BNDES para financiar campeões nacionais escolhidos por seus burocratas, incidirá uma alíquota de 5% de imposto cujos beneficiários serão alguns privilegiados das regiões Norte e Nordeste. Com sua incompreensível política industrial, o Brasil tornou-se o único país do mundo onde o governo tributa a si mesmo. Oxalá o aumento do custo dessa política convença o governo a suspendê-la, dado que os benefícios continuam onde sempre estiveram: baixos e muito concentrados em grandes grupos empresariais. O que, convenhamos, é mais um exemplo de política tipicamente brasileira.


*Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso são professores do pós graduação da Escola de Economia da Fundação Getulio Vargas (EPGE-FGV)

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