segunda-feira, outubro 10, 2011

JOSÉ DE SOUZA MARTINS - Porões da Pauliceia


Porões da Pauliceia
JOSÉ DE SOUZA MARTINS 
O Estado de S.Paulo - 10/10/11

Eles se difundiram quando a São Paulo colonial que sobrevivia no fim do Império começou a despregar-se de seu chão antigo e a cidade começou a perder o cheiro de terra dos dias de chuva. A arquitetura de cópia vinha ocupar o lugar das casas de taipa, de paredes barreadas com a alvura da tabatinga recolhida nos brejos do Tamanduateí.

Surgiram as casas de tijolo e de porão, de eira, beira e tribeira para que o passante soubesse quem era quem, gente de meia pataca ou gente de contos de réis. Tempos novos dominados pela mentalidade velha do tradicionalismo, dos que queriam mudar para permanecer, prudência de mamelucos que sabiam muito bem qual era a diferença entre ser e parecer. Quem vê cara não vê coração, diziam os mais velhos. Isso é para inglês ver, diziam os mais novos e céticos.

Os porões das novas casas do fim do Império e início da República não eram todos iguais. Havia porões para moradia dos ínfimos e na Rua Florêncio de Abreu ainda restam casas de porões que foram senzalas ou que abrigaram os serviçais que eram brancos por fora e negros pelo ofício. Gente que servia os que moravam nos cômodos de cima.

Os novos ricaços, que colhiam o ouro verde em pés de café, no tempo em que o dinheiro dava em árvore, apenas começavam a edificar os palacetes portentosos dos Campos Elísios e da Avenida Paulista. Já os que não tinham tanto dinheiro, mas tinham nome, os que ficaram na periferia da nova riqueza, zelavam pela pose e mantinham a aparência, apesar do declínio sabido e comentado.

Nas casas geminadas da Rua Helvetia ou da Rua Maria Antonia, os porões tinham sua função: abrigavam inquilinos que agregavam preciosos mil-réis ao haver das contas domésticas, quase sempre beirando o vermelho da coluna do deve. Não faz muito mais do que meio século e os passantes ainda podiam sentir o bafio que saía das janelinhas rentes à calçada, vindo dos porões habitados. Cheiro de humanidade, diziam. Na parte de cima morava quem podia e, na parte de baixo, quem precisava.

No refúgio dos porões, vidas foram salvas nos dias sangrentos da Revolução de 1924.

Num desses porões da Rua Maria Antonia, de casas geminadas, do lado de quem ia da Rua da Consolação para a Faculdade de Filosofia, instalou-se o Archimede, italiano, com a mulher como cozinheira, gorda e atarefada. Moravam nos cômodos de cima. Ele cuidava das mesas. Montou um restaurante nas saletas apertadas. Não havia mesas individuais. Quem chegava ia sentando onde houvesse lugar. E lá vinha ele perguntar:

- Zupa? Pasta?

A Zupa era sempre a mesma. A pasta era o melhor espaguete à bolonhesa de São Paulo e a melhor autoridade nisso era a fome dos estudantes da Filosofia. Depois do primo prato vinha o bife à milanesa. E o copo de vinho ruim, que para o italiano Archimede era alimentação, como na tradição de sua terra. Quem não pode, finge.

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