A crise por baixo da crise norte-americana
ARNALDO JABOR
O ESTADÃO - 02/08/11
Hoje é o dia D, de "default". Não sei se hoje a América está em moratória ou não, pois escrevo no passado do domingo. Quando enviei o artigo, tinham chegado a um acordo que ainda seria votado pelo plenário na segunda-feira (ontem), um acordo que muitos democratas acham uma vitória republicana, depois de um torturante suspense diante de um abismo.
Estive em Nova York na semana passada e senti de perto o cheiro de uma coisa nova: a estranha sensação de que havia e há um desejo de desastre no ar, como se quisessem conhecer o impensável.
O incrível é que o caos político foi criado pelo mito de um "equilíbrio" democrático, pela fantasia de que há uma democracia bem azeitada, com dois partidos com opiniões "discordantes". Isso é uma mentira.
O Paul Krugman escreveu no "The New York Times": "O culto ao equilíbrio exerceu um papel importante para nos levar até à beira do desastre". Comentaristas tratam da crise política como se os dois partidos fossem igualmente "intransigentes", o que não é verdade. Krugman dá um exemplo: "se um dos partidos dissesse que a Terra é plana, os jornais diriam: Há duas visões que divergem quanto ao formato do planeta".
Não, os republicanos não aceitam que a Terra seja redonda. A responsabilidade é totalmente deles. Há o óbvio, claro: briga política, eleições em 2012, vingança desde Nixon, racismo, interesses corporativos quanto a impostos. Tudo bem: jogo político sujo normal... Mas há mais que isso.
Essa obstinação autodestrutiva dos republicanos é tão brutal que aponta para razões mais profundas na consciência norte-americana. Seu prejuízo por essa chantagem escrota será imenso; mas eles topam tudo para arrasar a América de Obama. A novidade patológica é este recente "quase suicídio". É como se eles quisessem testar até onde vai o fundo do poço.
Em 1957, morei na Flórida, reduto de reacionários à direita de Genghis Khan, e vi de perto as duras "certezas" desse povo. Vi os negros humilhados, vi brancos terríveis jogando ácido em piscinas que negros ousaram frequentar e lembro-me sempre de um episódio imperceptível, mas que me impressionou muito. Eu viajava num ônibus onde havia uma família branca em pé, uma mãe e duas filhas, entre 7 e 10 anos. Vestiam-se com roupas longas, coloniais, tapando o corpo todo. Mas o que me espantou foi o fato de que nem a mãe nem as meninas olharam uma só vez para os passageiros. Era como se nós não existíssemos. Não era desprezo; era uma absoluta negação de nossa presença, dos seres humanos em geral. Eram de uma seita puritana pesada.
Senti que ali estava o traço básico do reacionarismo atávico do país. Os olhos que não nos viam eram a caricatura triste do fundamentalismo individualista, assim como a frieza fanática que vemos nos rostos do famoso quadro de Grant Wood, "American Gothic".
O dogmatismo do puritano colonial se rarefez nos séculos e se adoçou um pouco na ideologia mais tolerante dos democratas, mas persiste no coração norte-americano.
E esse veneno está renascendo. A cruel estupidez dos "tea parties" é o sintoma óbvio: a complexidade da vida atual provoca a recaída dessa doença atávica. Ela já assassinou os Kennedys, essa doença contaminou o Watergate e foi desinfetada, tentou o impeachment de Clinton, perseguido como um cão obsceno pela fogueira de Kenneth Starr. Essa doença político-religiosa sempre foi agressiva, mas o fato novo é que agora ela começou a ficar autodestrutiva.
O primeiro ataque foram a vitória fraudada de Bush e Cheney e o estrago irrecuperável que fizeram na América e no Ocidente.
Na "Democracia na América", Tocqueville afirma: "O individualismo é um sentimento que estimula cada cidadão a se afastar da massa de seus semelhantes e a se retirar para o isolamento com sua família e amigos; assim, cria uma pequena sociedade para seu uso próprio e abandona voluntariamente a grande sociedade que o envolve".
Essa fé individualista criou a sociedade mais forte do mundo, mas, agora, esse isolamento empreendedor não é mais possível, pois essa crença apenas em si mesmo ficou inviável num mundo revolucionado pela tecnociência, pelo multiculturalismo, pela incessante circularidade política e econômica.
A explosão do sentido do "inquestionável projeto ocidental" é insuportável para espíritos individualistas, nos quais pulsa um leve totalitarismo sob a aparência "democrática". Daí o desejo inconsciente (ou não) de se voltar à ideia mais antiga, mais linear de "indivíduo", quando o mundo era mais "plano".
Eles têm a nostalgia do "indivíduo" do início do século XX até os anos 50. O "indivíduo" hoje não tem a solidez antiga. Hoje, nossa "identidade única" foi fraturada em muitos "eus" e muitos outros. E essa fragmentação trouxe aos conservadores a "peste" (como dizem que Freud disse ao chegar aos Estados Unidos): a intolerável suspeita de que possuem um inconsciente. Aliás, Freud escreveu no "Mal-Estar da Civilização": "Nada nos é mais seguro do que o sentimento de nós mesmos, do nosso Eu. Este Eu nos aparece como autônomo, unitário, bem demarcado de tudo o mais. Mas essa aparência é enganosa, pois o Eu na verdade se prolonga para dentro, sem fronteira nítida, numa entidade psíquica inconsciente a que denominamos Id, à qual o Eu serve de fachada...". É isso que os republicanos querem tamponar, porque o Id é o outro.
E, ainda por cima, lhes chega o negão reformador e lhes mostra a imperiosa necessidade de mudar o país para uma sociedade mais compartilhada, com mais aceitação das diferenças, com sacrifício comum a todos. É intolerável para os velhos individualistas. Aí, instala-se a fome de irracionalismo, que me faz lembrar a paranoia anticomunista da Guerra Fria: "Better dead than red".
Exatamente como Osama bin Laden e os jihadistas, os republicanos e os psicóticos dos "tea parties" querem impedir a modernização deste mundo acelerado.
O grave é que isso pode arruinar a América no pior momento: China, duas guerras e crise econômica e política no mundo todo. Estamos assistindo ao "retorno do reprimido" do inconsciente norte-americano. Vai sobrar para nós.
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