Newton que se cuide...
GIL CASTELLO BRANCO
O GLOBO - 05/07/11
A piada da moda em Brasília é que o governo, com a maioria que possui no Congresso Nacional, se desejar, pode alterar até a Lei da Gravidade. Que dirá a lei 8.666, das licitações.
A prova disso é que o Parlamento está prestes a aprovar, com poucas modificações, o texto que o Executivo enviou-lhe sobre o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), apesar dos questionamentos contundentes de diversas entidades da sociedade civil, da Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público.
A tramitação desta medida provisória na Câmara dos Deputados transformou-se em verdadeiro Fla x Flu legislativo. No Senado, não deverá ser diferente. Os partidos da situação e da oposição tratam o assunto politicamente, confundindo a opinião pública. A razão passa ao largo. Na verdade, radicalismo à parte, o texto tem aspectos positivos e negativos.
A intenção de reduzir os prazos de implementação das obras brasileiras é ótima, seja para a Copa 2014, as Olimpíadas 2016 ou qualquer outra finalidade. No Brasil, da decisão de realizar uma grande obra ao seu início efetivo decorrem 3 anos e 2 meses. A preparação dos lotes, a licitação e a contratação do "projeto" levam 2 anos. Quanto à "obra", incluindo os preparativos, o processo licitatório e a celebração dos contratos, o tempo médio é de 14 meses, conforme estudos do Banco Mundial.
Assim sendo, a proposta do RDC de licitar o projeto e a obra juntos é interessante, até porque vários países já o fazem. Da mesma forma, a ideia de começar a licitação pela abertura das propostas, para depois ser efetuada a habilitação, não é desprezível. A inversão das fases poderá reduzir os recursos interpostos pelos concorrentes na primeira etapa do certame (habilitação), quando cada participante tenta desclassificar os demais adversários.
A questão crucial, porém, não está no que o governo pretende, mas sim na forma como deseja viabilizar a sua intenção. Sem o projeto básico detalhado e sem anunciar o valor que pretende aplicar, haverá uma "babel de propostas", tornando o julgamento extremamente subjetivo, porta aberta para a corrupção. Quanto valerá no submundo a informação privilegiada do valor que o governo efetivamente quer gastar? Com o rumo carnavalesco que a discussão do assunto tomou, o essencial debate sobre o detalhamento do chamado "anteprojeto de engenharia", contido no instrumento convocatório, foi relegado a segundo plano. O prazo fixado de 30 dias para a entrega das propostas também merece discussão, por ser absolutamente incompatível com a elaboração de projeto sério e responsável. Outros aspectos técnicos devem ser aprofundados para que a legislação cumpra a sua finalidade, sem afrontar os princípios da ética e da transparência.
É claro que pagamos hoje a conta da inépcia, da incompetência e da falta de planejamento. Há 3 anos e 8 meses o Brasil sabe que realizará a Copa. Também já se vão 2 anos que conhecemos, inclusive, as cidades-sedes. Com o atraso evidente, restou ao governo improvisar nova lei, batizada ironicamente de "regime desesperado de contratações", pelo procurador Júlio Marcelo de Oliveira. Aliás, é óbvio que a regulamentação do RDC deveria ser objeto de instrumento legislativo próprio, e não embutida como um "bacalhau" na medida provisória que dispõe sobre a aviação civil e a criação de cargos em comissão.
A pressa na aprovação do novo regime não é o único problema a ser superado. Existem dúvidas se os gestores e os órgãos de controle estarão capacitados para a implantação imediata do novo modelo, inaugurado em megaobras e com prazos exíguos. E valerá a pena estender os novos critérios a todas as obras públicas no país, como pretendem os governistas?
Apesar dos atropelos na aprovação do RDC, é provável que algumas obras permaneçam lentas. Afinal, continuarão a existir as demoradas licenças ambientais, as frequentes paralisações sugeridas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), os inúmeros recursos judiciais nas licitações, as eventuais intervenções do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da Fundação Nacional do Índio (Funai), entre outros óbices - legítimos, diga-se de passagem - para que as obras deslanchem.
Desta forma, se após o RDC as obras continuarem demoradas, com a aproximação dos megaeventos e a folgada maioria que o governo possui no Congresso Nacional, outras medidas provisórias poderão surgir. Pelo visto, vamos realizar os eventos, custe o que custar. Newton que se cuide...
GIL CASTELLO BRANCO é economista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas. E-mail: gil@contasabertas.org.br.
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