Coração na sapateira
JAIRO MARQUES
FOLHA DE SÃO PAULO - 07/06/11
"Apesar de ter começado a namorar muito tarde para os padrões de quem já "fica" aos 11 ou 12 anos, a amar e a me apaixonar comecei cedo. Uma sapateira velha lá de casa ganhou corações varados por flechas quando eu talvez tivesse uns sete anos.
O tempo foi passando e eu não já não aguentava mais conviver com aquela maldita pedra no caminho colocada pelo Drummond. O meu desejo era mesmo entregar de vez a flor para a menina que o Vinicius falou. Em alguns momentos, de tanta aflição, até quis ter a minha hora da estrela, igualzinho narrou a Clarice. Namorar me fazia falta demais, "affmaria".
Na minha cabeça, só os perfeitinhos, só aqueles mocinhos com mais músculos que a carne moída lá de casa conseguiam namoradas.
O resto do mundo -os de canelas minguadas iguais a mim, os tímidos demais, os esquisitões, os muito gordos ou muito magros, os CDFs (que agora respondem por "nerds"), os estragadinhos em geral-, esse povo tinha de se contentar com as histórias românticas dos livros, com os beijos estalados do cinema, além de ser o sujeito do "bom de papo" e só isso.
Lá em casa me chamavam até de "pé de santo", de tanto que eu ouvia -e só ouvia- as meninas da minha rua e da escola em suas ladainhas de sentimentos partidos. Mal eu sabia que elas estavam, de certa maneira, treinando a mim para viver grandes amores.
Pode ser puro bairrismo meu, pura proteção da "classe" dos abatidos pela guerra e dos de fora da curva da chamada normalidade, mas o tempo que a gente "perde" não namorando cedinho a gente ganha aprendendo delicadezas da conquista que há de vingar.
Quem não namora se afunda em poços de querer amar profundamente e se encanta com facilidade pelo baile do cachorro da esquina, pela risada longa da velhinha no metrô. Enquanto não se namora ninguém, namora-se o mundo. Mas tudo isso não quer dizer que jamais a "arte do encontro" irá concretizar-se na vida de quem é tido como diferente. Uma hora pode acontecer, igual a tudo na vida.
Não posso me comprometer com aquela máxima que diz que "todo pé cascudo tem o seu chinelo velho", mas que os mortais nasceram para encontrar ou tentar encontrar uma mãozinha para coçar seus piolhos, ah, nasceram.
Por isso, quando você vir um casalzinho de cadeirantes todo zombeteiro se agarrando na praça, não vá pensando que rolou rebelião na ortopedia do HC, é puro amor de dois mal-acabados.
Também contenha um certo espanto, um certo estranhamento ao flagrar a mocinha cegona aos beijos com o rapazinho anão. Ela pode não ver, o coração pode não ter razão, mas tamanho e menina dos olhos não são credenciais para o amor.
Namorar é para todos e o amor mistura as pessoas independentemente de seus padrões. Conheço surdos que namoram "ouvidos absolutos", ligeirinhos que caem de paixão por paralisados cerebrais.
A graça do sentimento não mora na perfeição, mora no carinho, na dedicação ao outro, na atração, no poder de fazer graça e de fazer poesias secretas. Dessa maneira, acho que o tempo tido como de "solidão" pode ser útil para aprender a respeitar e aproveitar o tempo da união. Então, que se libertem os corações das sapateiras".
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