A dependência do poder central
DANIELA BANDEIRA
O Globo - 30/05/2011
A crise de organização dos poderes no âmbito do Estado tem sido um dos temas mais recorrentes no mundo ocidental. A perspectiva de uma reforma, com foco em maior descentralização, coloca em debate a necessidade de um novo processo de divisão de deveres e implantação de políticas públicas locais. No entanto, o que se observa - e de modo muito claro no Brasil - é o enfraquecimento político-administrativo de estados e municípios e o fortalecimento da União.
Portanto, a superação do problema passa pela revisão do ideário basilar de Estado e sua substituição por outro que potencialize a pluralidade de comunidades e grupos locais, em que a pessoa situe-se e se encontre inserida. Pode-se dizer que a democracia social contemporânea não se assenta mais em uma perspectiva individualista e atomística herdada da Revolução Francesa, mas sobre uma dimensão realista da sociedade e de valorização dos seus órgãos e tecidos mais naturais.
Com esse novo olhar desenvolveram-se numerosos estudos sobre a regionalização das estruturas territoriais infra-estaduais, particularmente na Espanha e na Itália, proporcionando-se campo favorável às decisões político-legislativo-administrativas voltadas à maior autonomia regional. No Brasil, entretanto, a utopia da Constituição de 1988 de criar espaços autônomos, com políticas públicas próprias e receita fiscal local, não se efetivou após 23 anos de sua promulgação. A recente marcha dos prefeitos a Brasília referendou a total dependência das cidades em relação à União e evidenciou que o poder municipal tornou-se "cabo eleitoral" do governo federal, numa relação fisiológica sempre focada na próxima eleição.
Os municípios, embora tenham tributos como o IPTU e o ISS, não conseguem, em sua grande maioria, gerir, planejar e executar suas próprias políticas públicas. Pegam carona nas do Estado central. Não há no Brasil a cultura da autoadministração e de ações locais em benefício da população. Torna-se fácil perceber que a descentralização de poder, se por um lado representa a resposta a um ideal democrático na gestão administrativa, por outro, e de maneira contraditória, apresenta-se como mecanismo justificador de maior intervenção nos assuntos de interesse local.
É desta forma que o Estado brasileiro e seus municípios têm-se comportado. Logo, as questões políticas representam um entrave à descentralização. A definição das ações locais representa nada mais do que os interesses dos ocupantes dos altos postos nos partidos e que anseiam cargos no Legislativo ou no Executivo do Estado central. A rigor, configura-se um processo de barganha eleitoral. Muitas vezes, sequer há plataformas de governo local, o que inviabiliza a participação política mais efetiva dos cidadãos.
Conclui-se, portanto, que a descentralização instituída pela Constituição de 88 criou um mecanismo pelo qual a União liberta-se de um rol de tarefas e, ao mesmo tempo, se mune de instrumentos para a extensão e a aplicação uniformes de sua vontade a todo o território. Assim, a organização do poder, segundo o paradigma moderno do Estado, permanece intacta, pois não se verifica uma efetiva partilha político-administrativa voltada ao bem-estar socioeconômico. Na prática, os municípios transformaram-se em meros executores das políticas centrais, numa anacrônica relação de suserania - como se, na política administrativa do Brasil do terceiro milênio, ainda houvesse espaço para os suseranos e vassalos da era feudal.
DANIELA BANDEIRA é juíza e diretora da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj).
Portanto, a superação do problema passa pela revisão do ideário basilar de Estado e sua substituição por outro que potencialize a pluralidade de comunidades e grupos locais, em que a pessoa situe-se e se encontre inserida. Pode-se dizer que a democracia social contemporânea não se assenta mais em uma perspectiva individualista e atomística herdada da Revolução Francesa, mas sobre uma dimensão realista da sociedade e de valorização dos seus órgãos e tecidos mais naturais.
Com esse novo olhar desenvolveram-se numerosos estudos sobre a regionalização das estruturas territoriais infra-estaduais, particularmente na Espanha e na Itália, proporcionando-se campo favorável às decisões político-legislativo-administrativas voltadas à maior autonomia regional. No Brasil, entretanto, a utopia da Constituição de 1988 de criar espaços autônomos, com políticas públicas próprias e receita fiscal local, não se efetivou após 23 anos de sua promulgação. A recente marcha dos prefeitos a Brasília referendou a total dependência das cidades em relação à União e evidenciou que o poder municipal tornou-se "cabo eleitoral" do governo federal, numa relação fisiológica sempre focada na próxima eleição.
Os municípios, embora tenham tributos como o IPTU e o ISS, não conseguem, em sua grande maioria, gerir, planejar e executar suas próprias políticas públicas. Pegam carona nas do Estado central. Não há no Brasil a cultura da autoadministração e de ações locais em benefício da população. Torna-se fácil perceber que a descentralização de poder, se por um lado representa a resposta a um ideal democrático na gestão administrativa, por outro, e de maneira contraditória, apresenta-se como mecanismo justificador de maior intervenção nos assuntos de interesse local.
É desta forma que o Estado brasileiro e seus municípios têm-se comportado. Logo, as questões políticas representam um entrave à descentralização. A definição das ações locais representa nada mais do que os interesses dos ocupantes dos altos postos nos partidos e que anseiam cargos no Legislativo ou no Executivo do Estado central. A rigor, configura-se um processo de barganha eleitoral. Muitas vezes, sequer há plataformas de governo local, o que inviabiliza a participação política mais efetiva dos cidadãos.
Conclui-se, portanto, que a descentralização instituída pela Constituição de 88 criou um mecanismo pelo qual a União liberta-se de um rol de tarefas e, ao mesmo tempo, se mune de instrumentos para a extensão e a aplicação uniformes de sua vontade a todo o território. Assim, a organização do poder, segundo o paradigma moderno do Estado, permanece intacta, pois não se verifica uma efetiva partilha político-administrativa voltada ao bem-estar socioeconômico. Na prática, os municípios transformaram-se em meros executores das políticas centrais, numa anacrônica relação de suserania - como se, na política administrativa do Brasil do terceiro milênio, ainda houvesse espaço para os suseranos e vassalos da era feudal.
DANIELA BANDEIRA é juíza e diretora da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj).
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