Teclado silencioso
LUIS FERNANDO VERISSIMO
O GLOBO - 21/04/11
Os escritores antigos escreviam muito mais do que nós. Acho até que existia uma relação direta entre a dificuldade para escrever e a quantidade – e a qualidade – do que era escrito. Não há nada parecido, na era do e-mail, com o volume de correspondência dos escritores a pena, que além de manuscrever livros que pareciam monumentos manuscreviam cartas que pareciam livros. Quanto mais fácil ficou escrever, menos os escritores escrevem. Os livros ficaram mais finos e a correspondência se reduziu a latidos digitais, breves mensagens utilitárias cheias de abreviaturas, “envia” e pronto. Já um George Bernard Shaw escrevia uma peça atrás da outra com introduções maiores do que as peças e ainda tinha tempo para escrever cartas para todo o mundo. Geralmente xingando todo o mundo, o que exigia mais tempo e
palavras.
Desconfio que a nova técnica também modificou o jornalismo. As barulhentas redações pré-eletrônicas eram áreas conflagradas onde o combate com o teclado duro era um teste de resolução e resistência, um trabalho decididamente braçal. Depois vieram os computadores e o ambiente de chão de fábrica foi substituído pelo de laboratório. Tese: data da informatização o começo do desvio das redações para a direita. E isso que a gente muitas vezes confunde com linhas editoriais conservadoras dominando a nossa grande imprensa pode ser apenas um efeito do teclado silencioso.
RACISMO
O linguajar brasileiro está cheio de expressões racistas das quais não nos dávamos conta. Eram exemplos da condescendência que passava por tolerância entre nós. Termos como “crioulo”, “negão”, etc. eram considerados até carinhosos, do tipo de carinho que se dá a inferiores. Felizmente, são termos cada vez menos ouvidos. “Negro” foi substituído por “afro-descendente”, por influência dos “afro-americans”, num caso de colonialismo cultural positivo (em contraste com a substituição de “entrega” por “delivery”). Mas o racismo que não se reconhece continua no Brasil, e uma integração real pela linguagem viria mais rapidamente se as outras etnias adotassem auto-denominações parecidas. Eu só teria dificuldade em definir minha ascendência com alguma concisão. Luso-ítalo-germano (e provavelmente afro)-descendente? Como boa parte dos brasileiros, não sou de uma linha, sou de um emaranhado.
Quando eu era garoto nós tínhamos uma empregada negra que usava um nome apropriado para nós, de carne branca: peixe. Lembro da Araci me tirando da cama para ir a escola com a frase “Levanta, peixe!”. E completando: “A coisa que eu tenho mais nojo é ver peixe na cama”. Se fosse hoje eu poderia protestar: “Peixe, não. Aqua-descendente”. A Araci provavelmente viraria a cama.
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