Um paradigma espetaculoso
LUIZ FERNANDO JANOT
O GLOBO - 23/12/10
No início do século passado, a cidade do Rio de Janeiro foi palco para inimagináveis transformações urbanas. Ao se consolidar no poder, o governo republicano atuou de forma implacável na velha cidade colonial e imperial com o objetivo de transformá-la numa "cidade civilizada" que correspondesse aos princípios positivistas de ordem e progresso. Demoliram morros, efetuaram aterros, destruíram casas, alargaram ruas, abriram avenidas - enfim, um conjunto extraordinário de obras que fez com que o Rio fosse aclamado "cidade maravilhosa". Foram tempos de luxo, cultura e beleza simbolizados pela construção da Avenida Central, do Teatro Municipal, do Museu de Belas Artes, da Biblioteca Nacional e dos palacetes, prédios, clubes e hotéis que prósperos empresários, como a família Guinle, deixaram como legado para a cidade.
Com os avanços tecnológicos na construção civil e a influência da cultura americana, a cidade se verticalizou, dando origem à Cinelândia, ao edifício "A Noite" e alguns belíssimos prédios de apartamentos na Glória e no Flamengo. Sucessivamente, o Rio incorporou ao seu contexto urbano o maior e o melhor acervo da arquitetura modernista brasileira. O edifício do MEC, a sede da ABI, o Aeroporto Santos Dumont, o Parque Guinle, o Conjunto Residencial do Pedregulho, o Museu de Arte Moderna e o Monumento aos Pracinhas são alguns exemplos que demonstram a qualidade da produção arquitetônica carioca daquela época e que até hoje permanece como referência para quem deseja conhecer a cidade.
Mas existia, também, o outro lado da moeda. A precariedade dos recursos destinados à habitação popular levou as populações mais pobres a se deslocar para os subúrbios da Central e da Leopoldina e para as favelas que se espalhavam por toda a cidade. Por sua vez, as famílias mais ricas e uma significativa parcela da classe média decidiram morar à beira-mar, nos bairros da Zona Sul. Vislumbrando esse mercado emergente, as grandes empresas imobiliárias concentraram seus investimentos, preferencialmente, nas localidades litorâneas, deixando os subúrbios para os pequenos construtores e empreiteiros informais.
A imensa procura por apartamentos menores e mais econômicos, sem que fosse exigida qualquer contrapartida dos construtores, contribuiu para a produção maciça de imóveis desprovidos de qualquer preocupação estética e funcional. Aceitou-se passivamente uma lógica de mercado que oferecia alta lucratividade na comercialização de imóveis dotados apenas dos requisitos mínimos exigidos pela legislação. A perda da qualidade arquitetônica nas construções acentuou-se a partir dessa época e alcançou o seu auge nos anos 50 durante o boom imobiliário, especialmente em Copacabana. Esse período é marcado pela produção de uma quantidade incalculável de unidades residenciais amesquinhadas, formando concentrações comprometedoras da eficiência dos serviços de infraestrutura e insustentáveis do ponto de vista ambiental. Por mais contraditório que possa parecer, esse modelo se repete para atender à demanda por imóveis semelhantes na Barra da Tijuca e no Recreio dos Bandeirantes. E, se não for controlado, irá se estender para a região das Vargens e de Guaratiba, comprometendo definitivamente o meio ambiente nessas localidades.
Todavia, vislumbramos uma possibilidade de reversão gradativa desse modelo de ocupação extensiva da cidade, na medida em que as comunidades que estão sendo retomadas do poder paralelo comecem a receber novos investimentos. A requalificação urbana dessas localidades e das áreas desvalorizadas no seu entorno deverá despertar o interesse das empresas imobiliárias em atuar efetivamente na ocupação dos inúmeros vazios urbanos nelas existentes. Espera-se, contudo, que as futuras intervenções não fiquem atreladas unicamente às variáveis de ordem econômica e financeira, e contribuam para elevar o padrão de qualidade das construções.
É importante que se tenha a compreensão de que o Rio possui uma cultura própria e que a sua valiosa imagem não pode ficar comprometida por obras sem consistência e de gostos duvidosos. O deslumbramento na apreciação de projetos que chamam a atenção esconde, muitas vezes, a sua fragilidade diante do tempo que os transformará precocemente em objetos ultrapassados e indesejáveis. As reluzentes pontes em arco construídas pelo Metrô sobre o Canal do Mangue e a estonteante torre de elevadores para acesso ao Morro do Cantagalo, apenas para citar alguns exemplos, justificam a nossa preocupação diante da possibilidade de esse paradigma arquitetônico espetaculoso ser adotado aleatoriamente nos projetos que serão construídos no Rio, pelo poder público e pela iniciativa privada, para receber os Jogos Olímpicos de 2016.
LUIZ FERNANDO JANOT é arquiteto urbanista e professor da FAU-UFRJ.
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