Entre uns e outros
Roberto DaMatta
O Estado de S. Paulo - 13/10/2010
Se um processo eleitoral democrático não conduzir a alguma crise, é sinal de que essa tão execrada democracia liberal - baseada na disputa, legitimada por normas, arbitrada pelos tribunais, e conduzida pelo bom senso dos eleitores -, vai mal. Só não há crise quando o poder político é indisputável (como quer Lula e asseclas) e quando o futuro das eleições é não apenas previsto, mas (como ocorreu com no primeiro turno) tem um caráter plebiscitário (que os radicais tanto amam) e são favas contadas! Para muitos, hoje caindo de maduros de obsolescência mental e ideológica, o ideal seria haver eleições para porteiro de prédio, fiscal de bairro, bordel e biblioteca escolar, jamais para cargos da alta administração pública, vocacionada para ser o corretor moral do mundo. Se o processo espelhar o final da tal "luta de classes", que foi teorizada antes da internet e da globalização e de uma China comunista-capitalista jamais prevista pela teoria do despotismo oriental, tanto melhor. Nesse caso, calaríamos a mídia e, esquecidos de burgueses reacionários como Thomas Jefferson, que preferia jornais sem governo a um governo sem jornais, realizaríamos o sonho arcaico de chegar a uma sociedade "resolvida". Ou seja: a um corpo social cadavérico e pútrido: sem problemas ou movimento. Morto e enterrado como o Brás Cubas que eu, jovem, aprendi com os meus professores de esquerda, ser um personagem de um autor reacionário que seguia algum, vejam o erro crasso, modelito europeu. Como se a nossa esquerda tivesse sido capaz de inventar alguma teoria que fosse além da inacreditável dialética entre infra e superestrutura. Ai, que preguiça...
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Eleição é dúvida, aposta, crise. Dá pena ver o comissariado petista convocando aliados que se odeiam para agradar ao dono da bola porque ele meteu na cabeça que não pode perder. Do mesmo modo, dá pena ver a inflação do PV por meio da performance de Marina Silva que, sozinha, fez mais em alguns meses do que o partido em décadas. Tudo para esconder um Lula feito de guerra e ódio e uma dimensão que, na minha humilde cabeça, também explica os votos dados a Marina: o protesto do eleitor que não queria votar em Dilma e não podia votar em Serra porque ele se afogava no seu próprio racionalismo e falava melhor e mais de Lula do que de FHC, cujo governo promoveu a entrada no Brasil neste mundo indigno de competição, mercado, telefonia para todos, internet, venda de bancos estatais podres, crédito farto porque a moeda é - depois de décadas - estável e forte, disciplina fiscal, reformulação da Previdência, bolsas para os carentes e, acima de tudo, um governo no qual o presidente tinha noção de limites. Sabia o significado profundo do cargo que ocupava e o honrava com todas as letras. Procurava, mesmo na esfera escorregadia da política, manter distância, embora fosse alvo de agressões incivilizadas da oposição petista. Um presidente que, mesmo diante de um movimento como o "fora FHC", e a dessacralização de um de seus lares, invadido pelo MST, jamais desejou o fim dos seus oponentes ou externou (como o democrático Brizola) o desejo de fuzilar algum adversário. Tal como os jornais com os quais colaboro, jamais deram qualquer palpite sobre o que escrevo. Esse é o legado de liberdade e equanimidade de FHC que não tem nenhum exemplo no autoritarismo petista e que deve ser revelado por Serra com todas as letras. A estigmatizada e hoje oportunisticamente esquecida "herança maldita" que, como disse Alberto Goldman na base do doa a quem doer, permeia todo o governo Lula, um governo que ficou tanto melhor quanto mais aprofundou essa maldição liberal.
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Todo mundo sabe que inteligência, burrice, ignorância, desonestidade ou intolerância não são suficientes. O mundo é mundo justamente porque os mais talentosos (que tem mais competência e história política) podem ser vencidos pelos Tommys: os bonecos do grande Gabo. Aquele ventríloquo genial (mas um tanto louco) da história de Ben Hetch. É preciso transformar qualidades (ou defeitos) em narrativas: em dramas que liguem o candidato ao papel que ele desempenha em cada fase do momento eleitoral. Eleger alguém é entrar de cabeça no fetichismo. É preciso passar de pessoa a ídolo. Agora, ninguém pode ser o ídolo da chuva num país que acabou de viver um dilúvio; nem ídolo da castidade no país do carnaval; nem ídolo do estatismo num país obviamente cansado de tanta promessa estatizante, e de tanto órgão oficial que tudo faz pelos seus filhos e partidários e nada realiza para cidadãos.
Se você, entretanto, inventa um ídolo que fale de eficiência administrativa, que denuncie o ??familismo deslavado de um governo que se diz ideológico e que assim é na sua visão estratégica da vida e do mundo, um governo compadre de déspotas e caudilhos, então você pode conseguir uma multidão de velas, e votos.
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Uma ponderação final. Se dona Marina e a cúpula do PV (ou seria um novo comissariado?) pensa que deve tirar o corpo fora, sugiro que ela leia o que o Lula disse sobre o bagre (isso mesmo, o peixe!) como um obstáculo para um gigantesco projeto de construção de hidroelétricas caríssimas e destrutivas da natureza no Brasil, nos mais belos moldes stalinistas. Entrementes, Mario Vargas Llosa recebe - e já era tempo - um Nobel que muito me deixa feliz, enquanto nós ficamos discutindo se é bom ou ruim ter uma, duas ou quatro caras para ganhar votos.
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