O 'nuncantismo'
Miriam Leitão
O Globo - 10/09/2010
O Banco Central ontem anunciou mais um avanço brasileiro: as taxas de juros de equilíbrio podem ser mais baixas. Equivale a dizer que o país precisa de menos juros para manter a inflação sob controle. O IBGE divulgou na quarta-feira uma série de dados mostrando várias boas notícias. O país avança, só não é nunca antes. Avança como antes, em alguns pontos devagar, em outros mais rapidamente.
Uma das mais irritantes obsessões do governo atual é a apropriação indébita do mérito alheio, expresso no “nuncantismo”. Na ata do Copom, a excelente notícia que o Banco Central deu é que a potência da política monetária é maior, o que pode levar a taxa de juros para níveis mais baixos. O BC precisa explicar melhor sua afirmação e deve fazê-lo no próximo relatório de inflação, e assim acabar com algumas dúvidas que surgiram nos últimos meses sobre sua comunicação com o mercado. Mas até esse ritual de reuniões, atas e relatórios foi institucionalizado antes do governo Lula.
O pior do “nuncantismo” é que ele emburrece e desinforma.
Levado a extremo eliminará Pedro Álvares Cabral para entregar o feito do descobrimento ao próprio Lula.
Além disso, o cacoete do presidente produz desperdício de esforços. Gasta-se um tempo enorme, páginas de jornais, minutos de mídia eletrônica para repor os fatos e dar os méritos a quem os tem em cada etapa do processo histórico do país.
O IBGE está ainda protegido desse vírus que hoje inutilizou parte do Ipea como centro de inteligência — lá ainda resistem alguns devotos do pensamento livre; poucos, mas valorosos.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios exibiu um retrato desse processo de evolução pegando o período desde o fim do governo Collor. Estão lá erros, omissões e vitórias de três governos: o curto período de Itamar, oito anos de Fernando Henrique e sete anos de Lula. O resultado anima e desanima, depende do que se olha e como se olha.
Na informação conjuntural dada pelo Banco Central, ontem, o que se vê é também o quadro de um filme. A hiperinflação derrubada em 94 levou a um corte com o passado com grandes reflexos nos anos seguintes. A nova ordem monetária foi garantida e depois consolidada. Mais recentemente, no governo Lula, tem sido possível ampliar o crédito e agora — oxalá o BC tenha razão — ter taxas de juros que, com movimentos menores, mais sutis, evitem qualquer elevação indesejada da taxa de inflação. Com o IPCA de 0,04% de agosto, o país completa três meses de inflação zero, o que, num contexto de crescimento forte, melhoria de renda, aumento de emprego, é uma excelente notícia. Cada ponto da melhoria de renda é capturada pelo seu dono — o trabalhador, a trabalhadora — e as pessoas preservam seu poder de compra.
Que diferença com o antes, o muito antes, quando perdia-se metade do salário real num mês. O IBGE mostrou que houve um salto ornamental na renda após a queda da inflação no Plano Real. Tão alto — de 43% — nos primeiros dois anos, que até hoje, mesmo com o aumento da renda desde 2004, não interrompida nem mesmo no ano de crise de 2009, o país ainda não voltou ao melhor ano da renda do trabalhador que foi 1996. Outra excelente notícia: desde 2001 cai sistematicamente a desigualdade de renda.
A educação avança morosamente e reduziu o passo em alguns indicadores.
O mercado de trabalho acelerou a melhora, com a elevação do percentual dos trabalhadores do mercado formal. Ainda assim, o Brasil tem 22 milhões de trabalhadores informais, oito milhões de desempregados, e quatro milhões de brasileiros trabalhando antes dos 17 anos. Pior é ter ainda um milhão de crianças, de cinco a 13 anos, trabalhando, quando deveriam estar apenas estudando e brincando.
O passo de cágado do avanço do saneamento é uma vergonha nacional.
Melhorar, melhoramos, mas ninguém pode se vangloriar de um fato até estranho: o encolhimento de 59,3% para 59,1% de domicílios com esgoto ou fossa séptica ligada à rede coletora.
Isso acontece após dois anos de funcionamento do PAC que, a julgar pela ensurdecedora publicidade do governo, é o coração do “nuncantismo”.
Herdeira do defeito lulista de negar o mérito alheio e inflacionar o próprio, a candidata Dilma Rousseff poderia ter diante desse dado de saneamento uma epifania: a de que os dados são teimosos e os fatos se impõem por si mesmos, independentemente do que diga o marketing.
É bom para todos que o Brasil tenha avançado no passado, esteja avançando agora e se prepare para novos avanços.
É natural comemorar o próprio êxito, o que não é honesto é negar o dos outros.
Nem honesto, nem produtivo, porque sem aprender com os acertos alheios e os próprios erros, certamente, ninguém consegue acertar o passo, insistir no que deu certo, preparar o caminho para novas arrancadas. Entende-se que numa campanha todos ressaltem os próprios acertos, mas o problema do presidente Lula é que ele faz isso antes, durante e depois das campanhas.
Na quarta, Lula disse que só agora o Brasil é independente e enfrenta as outras nações. Deu como exemplo a briga na OMC contra o subsídio do algodão dos Estados Unidos.
Quem começou a briga foi Pedro de Camargo Neto, no governo Fernando Henrique.
A propósito: a expressão usada por Lula para definir os Estados Unidos, “o elefante que se borra”, é... como dizer... Melhor nem tentar definir. Perda de tempo. Todos sabem que presidentes não falam assim de países com quem temos densas, intensas e produtivas relações econômicas e políticas.
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