Lula e a visão autoritária da imprensa
EDITORIAL
O GLOBO - 21/09/10
É nos improvisos que o presidente Lula se deixa levar, fala o que não seria conveniente do ponto de vista político, mas transmite o que lhe vai no fundo da alma. Inebriado por índices recordes de popularidade, nunca antes alcançados neste país, Lula tem radicalizado na autoindulgência, como se o apoio popular o colocasse acima de leis e limites institucionais.
São exemplos desse desvio as sucessivas vezes em que o presidente age como chefe de partido, numa deplorável mistura de papéis, porém bem ao estilo de um governo que, na ocupação da máquina burocrática, exercita ao extremo a confusão entre interesses privados e a esfera pública.
É nessa zona cinzenta que a grande família de Erenice Guerra se aboletou, e corporações sindicais sentam praça nos cofres do Tesouro, ao lado de movimentos ditos sociais que atuam em estado de semiclandestinidade, em parte financiados pelo contribuinte.
À medida que se envolvia no projeto de eleger a sua desconhecida ministra Dilma Rousseff, enquanto mantinha e até elevava a popularidade, o presidente foi jogando às favas o equilíbrio. Principal atração dos comícios de sua candidata, Lula radicaliza na insensatez. Pode-se dar desconto pelo inevitável aumento de temperatura característico das campanhas eleitorais, mas não é possível ser condescendente quando se invade de maneira desvairada o campo vital das liberdades democráticas.
Até porque o ataque feito por Lula à imprensa, num comício em Campinas, sábado, não é um acidente de rota, um fato isolado no seu governo de quase oito anos; tampouco no seu partido, onde se destilam propostas formais para a “democratização da mídia”, o “controle social dos meios de comunicação”, eufemismos para designar a destruição da independência da imprensa profissional, assim como fazem os governos de Cristina Kirchner e Hugo Chávez, aliados preferenciais da diplomacia companheira no continente.
No sábado, Lula, como se tomado pelo espírito do Rei Sol, um Luis XIV tropicalizado, bradou: “Nós somos a opinião pública.” Em meio a ataques a “alguns jornais e revistas que se comportam como se fossem um partido político(...)”, Lula, na verdade, externou toda a dificuldade que ele, auxiliares diretos e líderes petistas têm de entender o papel da imprensa numa sociedade aberta. Há tempos emana do Planalto a visão de que o governo Lula acabou com os “formadores de opinião”, e agora se sabe que eles foram substituídos, segundo este contorcionismo intelectual, pelo presidente e seu grupo no poder. Numa reedição de um “pai dos pobres” de figurino getulista, o presidente teria hipnotizado as massas, alimentadas por um assistencialismo bilionário, e por isso elas só reproduzirão a opinião do seu redentor.
Mais do que uma tosca engenharia de raciocínio, porém, esta percepção lulista da imprensa deriva de um entendimento autoritário da função dos meios de comunicação: segundo a vulgata ideológica dos intelectuais orgânicos do lulopetismo, a imprensa é um instrumento de manipulação da sociedade.
E, sendo assim, precisa estar subordinada ao partido e ao Estado, os quais, no imaginário desses militantes, se confundem. É inconcebível para esses que a imprensa profissional — que precisa ser rentável para se manter independente, e o mais distante possível de verbas administradas pelos poderosos do momento —cumpra uma função pública, e disto têm consciência profissionais e acionistas das empresas de comunicação.
A visão maniqueísta lulopetista da imprensa leva a que se procure intrincadas conspirações por trás de reportagens de denúncia, um truque que também serve para jogar uma cortina de fumaça à frente de desvios éticos cometidos pela companheirada. Foi assim que o mensalão se tornou produto de uma imprensa “golpista”, bem como a ação dos aloprados.
Denunciado por um aliado desgostoso, Roberto Jefferson, do PTB, o esquema de coleta e lavagem de dinheiro sujo para alimentar uma bancada parlamentar governista gerou um processo que tramita no Supremo Tribunal Federal, depois de aceita denúncia da Procuradoria Geral da República contra essa “organização criminosa”. No escândalo da tentativa de compra de um dossiê falso contra o tucano José Serra, na campanha de 2006 para o governo de São Paulo, petistas proeminentes — os “aloprados”, nas palavras do próprio Lula — foram apanhados em flagrante delito.
Nada porém abala o discurso petista contra manobras “golpistas” da imprensa independente.
Mas não houve qualquer crítica quando, no primeiro governo FH, reportagem do GLOBO derrubou o então presidente dos Correios, Henrique Hargreaves, ao revelar que ele tinha um contrato com o Sebrae, do qual recebia sem trabalhar.
Não se ouviu, também, qualquer reclamação petista quando a “Folha de S.Paulo” relatou histórias de compra de votos de deputados federais a favor da emenda constitucional que permitiria a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Ou na revelação feita pelo GLOBO de que o esquema do mensalão, antes de José Dirceu, Delúbio e Genoino, fora acionado pelo PSDB mineiro no financiamento da campanha frustrada de reeleição do governador Eduardo Azeredo, delito também a ser julgado no STF. E nenhuma admoestação à imprensa partiu do PT na divulgação de cenas pornográficas de corrupção patrocinadas pelo DEM de Brasília.
Imprensa boa é imprensa chapa-branca, deduzse.
Outra prova cabal de como o PT se equivoca sobre o jornalismo profissional foi dada por José Dirceu, cassado no escândalo do mensalão e considerado pelo Ministério Público o chefe da tal “organização criminosa”.
Considerado líder importante no partido, até visto como herói por ter se imolado pela causa petista, Dirceu demonstra continuar com bom trânsito em Brasília, e continua a pontificar.
Na semana passada, ao doutrinar sindicalistas petroleiros na Bahia, o ex-ministro da Casa Civil de Lula comemorou o fato de uma provável vitória da “companheira de armas” Dilma Rousseff facilitar a execução do “projeto político” do PT, difícil de ser aplicado com Lula, pois o presidente em contagem regressiva para voltar a São Bernardo é algumas vezes maior que o partido, explicou. Do projeto, consta o de sempre: “democratização dos meios de comunicação” etc.
Além de considerar que a imprensa brasileira abusa do direito de informar — uma pérola do pensamento da esquerda autoritária —, Dirceu reclamou de uma suposta tentativa das redações de interferir na formação do futuro governo Dilma, algo digno de ficção.
Ora, isto não é função da imprensa.
A não ser que se entendam os meios de comunicação pela ótica do PT: não passam de instrumentos de manipulação política e social.
É gigantesca também a dificuldade de Lula e companheiros entenderem que veículos de comunicação podem não defender partidos e candidatos, mas princípios, e, em função deles, criticar ou elogiar partidos e candidatos.
Trata-se de outro equívoco tentar comparar a postura da imprensa brasileira diante de governos, candidatos e legendas com a de países onde práticas democráticas são seguidas há séculos e existem partidos enraizados na sociedade por gerações.
Deturpar a realidade em razão de cacoetes ideológicos não chega a preocupar.
Costuma acontecer na política e mesmo no mundo acadêmico. O perigo está quando se chega ao poder com este tipo de percepção distorcida.
São exemplos desse desvio as sucessivas vezes em que o presidente age como chefe de partido, numa deplorável mistura de papéis, porém bem ao estilo de um governo que, na ocupação da máquina burocrática, exercita ao extremo a confusão entre interesses privados e a esfera pública.
É nessa zona cinzenta que a grande família de Erenice Guerra se aboletou, e corporações sindicais sentam praça nos cofres do Tesouro, ao lado de movimentos ditos sociais que atuam em estado de semiclandestinidade, em parte financiados pelo contribuinte.
À medida que se envolvia no projeto de eleger a sua desconhecida ministra Dilma Rousseff, enquanto mantinha e até elevava a popularidade, o presidente foi jogando às favas o equilíbrio. Principal atração dos comícios de sua candidata, Lula radicaliza na insensatez. Pode-se dar desconto pelo inevitável aumento de temperatura característico das campanhas eleitorais, mas não é possível ser condescendente quando se invade de maneira desvairada o campo vital das liberdades democráticas.
Até porque o ataque feito por Lula à imprensa, num comício em Campinas, sábado, não é um acidente de rota, um fato isolado no seu governo de quase oito anos; tampouco no seu partido, onde se destilam propostas formais para a “democratização da mídia”, o “controle social dos meios de comunicação”, eufemismos para designar a destruição da independência da imprensa profissional, assim como fazem os governos de Cristina Kirchner e Hugo Chávez, aliados preferenciais da diplomacia companheira no continente.
No sábado, Lula, como se tomado pelo espírito do Rei Sol, um Luis XIV tropicalizado, bradou: “Nós somos a opinião pública.” Em meio a ataques a “alguns jornais e revistas que se comportam como se fossem um partido político(...)”, Lula, na verdade, externou toda a dificuldade que ele, auxiliares diretos e líderes petistas têm de entender o papel da imprensa numa sociedade aberta. Há tempos emana do Planalto a visão de que o governo Lula acabou com os “formadores de opinião”, e agora se sabe que eles foram substituídos, segundo este contorcionismo intelectual, pelo presidente e seu grupo no poder. Numa reedição de um “pai dos pobres” de figurino getulista, o presidente teria hipnotizado as massas, alimentadas por um assistencialismo bilionário, e por isso elas só reproduzirão a opinião do seu redentor.
Mais do que uma tosca engenharia de raciocínio, porém, esta percepção lulista da imprensa deriva de um entendimento autoritário da função dos meios de comunicação: segundo a vulgata ideológica dos intelectuais orgânicos do lulopetismo, a imprensa é um instrumento de manipulação da sociedade.
E, sendo assim, precisa estar subordinada ao partido e ao Estado, os quais, no imaginário desses militantes, se confundem. É inconcebível para esses que a imprensa profissional — que precisa ser rentável para se manter independente, e o mais distante possível de verbas administradas pelos poderosos do momento —cumpra uma função pública, e disto têm consciência profissionais e acionistas das empresas de comunicação.
A visão maniqueísta lulopetista da imprensa leva a que se procure intrincadas conspirações por trás de reportagens de denúncia, um truque que também serve para jogar uma cortina de fumaça à frente de desvios éticos cometidos pela companheirada. Foi assim que o mensalão se tornou produto de uma imprensa “golpista”, bem como a ação dos aloprados.
Denunciado por um aliado desgostoso, Roberto Jefferson, do PTB, o esquema de coleta e lavagem de dinheiro sujo para alimentar uma bancada parlamentar governista gerou um processo que tramita no Supremo Tribunal Federal, depois de aceita denúncia da Procuradoria Geral da República contra essa “organização criminosa”. No escândalo da tentativa de compra de um dossiê falso contra o tucano José Serra, na campanha de 2006 para o governo de São Paulo, petistas proeminentes — os “aloprados”, nas palavras do próprio Lula — foram apanhados em flagrante delito.
Nada porém abala o discurso petista contra manobras “golpistas” da imprensa independente.
Mas não houve qualquer crítica quando, no primeiro governo FH, reportagem do GLOBO derrubou o então presidente dos Correios, Henrique Hargreaves, ao revelar que ele tinha um contrato com o Sebrae, do qual recebia sem trabalhar.
Não se ouviu, também, qualquer reclamação petista quando a “Folha de S.Paulo” relatou histórias de compra de votos de deputados federais a favor da emenda constitucional que permitiria a reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Ou na revelação feita pelo GLOBO de que o esquema do mensalão, antes de José Dirceu, Delúbio e Genoino, fora acionado pelo PSDB mineiro no financiamento da campanha frustrada de reeleição do governador Eduardo Azeredo, delito também a ser julgado no STF. E nenhuma admoestação à imprensa partiu do PT na divulgação de cenas pornográficas de corrupção patrocinadas pelo DEM de Brasília.
Imprensa boa é imprensa chapa-branca, deduzse.
Outra prova cabal de como o PT se equivoca sobre o jornalismo profissional foi dada por José Dirceu, cassado no escândalo do mensalão e considerado pelo Ministério Público o chefe da tal “organização criminosa”.
Considerado líder importante no partido, até visto como herói por ter se imolado pela causa petista, Dirceu demonstra continuar com bom trânsito em Brasília, e continua a pontificar.
Na semana passada, ao doutrinar sindicalistas petroleiros na Bahia, o ex-ministro da Casa Civil de Lula comemorou o fato de uma provável vitória da “companheira de armas” Dilma Rousseff facilitar a execução do “projeto político” do PT, difícil de ser aplicado com Lula, pois o presidente em contagem regressiva para voltar a São Bernardo é algumas vezes maior que o partido, explicou. Do projeto, consta o de sempre: “democratização dos meios de comunicação” etc.
Além de considerar que a imprensa brasileira abusa do direito de informar — uma pérola do pensamento da esquerda autoritária —, Dirceu reclamou de uma suposta tentativa das redações de interferir na formação do futuro governo Dilma, algo digno de ficção.
Ora, isto não é função da imprensa.
A não ser que se entendam os meios de comunicação pela ótica do PT: não passam de instrumentos de manipulação política e social.
É gigantesca também a dificuldade de Lula e companheiros entenderem que veículos de comunicação podem não defender partidos e candidatos, mas princípios, e, em função deles, criticar ou elogiar partidos e candidatos.
Trata-se de outro equívoco tentar comparar a postura da imprensa brasileira diante de governos, candidatos e legendas com a de países onde práticas democráticas são seguidas há séculos e existem partidos enraizados na sociedade por gerações.
Deturpar a realidade em razão de cacoetes ideológicos não chega a preocupar.
Costuma acontecer na política e mesmo no mundo acadêmico. O perigo está quando se chega ao poder com este tipo de percepção distorcida.
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