segunda-feira, julho 26, 2010

MARCELO DE PAIVA ABREU

Políticas perversas
Marcelo de Paiva Abreu
FOLHA DE SÃO PAULO - 26/07/10



Disseminou-se hoje no Brasil a disposição de aceitar mais riscos do que recomendaria a prudência. A disputa presidencial estimulou o governo a partir para uma estratégia de uso quase obsceno da máquina pública na distribuição de benesses. Não é surpresa que, na esteira dessa postura do governo, prospere a disputa pelo acesso aos benefícios distribuídos pelo Estado com exacerbação de comportamentos rentistas. Venda de vento tornou-se vocação empresarial digna de inveja dos concorrentes. É só assegurar acesso a crédito público subsidiado e tratar de convencer investidores externos de que o Brasil vai ser, afinal, o país do presente. O ambiente de escancarada cooptação com o dinheiro público desestimula o debate sério de políticas públicas.

A formulação de políticas públicas tem sido calcada em diagnósticos superficiais com clara reincidência em erros cometidos no passado. Exemplo recente é a pretensa detecção de "desindustrialização", baseada em superficial observação da queda da participação da indústria nas exportações totais ou no PIB. Nenhuma menção ao impacto do aumento dos preços de commodities em relação aos preços de produtos industriais ou ao amadurecimento da economia brasileira com ampliação do peso relativo do setor serviços.

Tal diagnóstico tem cumprido papel central na justificativa de políticas "corretivas" - muito além do que seria justificável com base em critérios de eficiência - baseadas na provisão de crédito público subsidiado e na política de compras do Estado e de empresas estatais envolvendo metas de conteúdo nacional.

O BNDES absorveu no período recente recursos do Tesouro Nacional ao ritmo de R$ 120 bilhões por ano. Recursos que são tomados pelo Tesouro à taxa Selic, enquanto o grosso dos empréstimos do BNDES está indexado à TJLP, muito mais baixa. Reduzir o custo do investimento é objetivo louvável de política econômica, mas não por meio de subsídios maciços e indiscriminados. O governo teve oito anos para tratar de reduzir o custo do investimento de forma decente e fazer convergir a taxa Selic e a TJLP por meio de consolidação do equilíbrio das contas públicas. Crédito subsidiado só faz sentido se o objetivo for eliminar imperfeições de mercado, por exemplo, estimulando o comportamento inovador da indústria ou controlando a geração de externalidades negativas como poluição do meio ambiente. A explicação do BNDES, contrapondo uma "visão dinâmica" a uma "visão quantitativa" para explicar por que a sua atuação seria "benigna" do ponto de vista da sustentação do nível de atividade, pois cria capacidade produtiva, é deprimente.

A adoção de políticas autárquicas quanto a compras públicas é facilitada pelo fato de o País não ser signatário do acordo relevante na Organização Mundial do Comércio (OMC). A recente Medida Provisória 495 sobre licitações públicas pretende garantir a "promoção do desenvolvimento nacional" e estabelece margem máxima de 25% em benefício de bens e serviços nacionais. A política de compras da Petrobrás tem sido calcada na ideia de que não deve ser perdida a oportunidade de expansão da produção de petróleo para adotar política industrial que estimule a substituição de importações de equipamentos por meio de esquemas de preferência a supridores locais. A mesma perspectiva condiciona a concorrência do trem-bala a descabidas exigências de conteúdo local. Por que é mesmo que o conteúdo local deve ser crescente nos 45 anos previstos no cronograma, alcançando 90% para trilhos e dormentes e 60% para portas, janelas, motor de tração e rodas? Reservas de mercado acarretam aumento do custo do investimento, exatamente o oposto do que o BNDES diz ser o objetivo de sua política de subsídios. Proteção à indústria nascente pode até fazer sentido. Mas metas de conteúdo nacional são sabidamente problemáticas e é fundamental que haja programação da retirada de incentivos em prazo razoável. O Brasil tem, entretanto, longa experiência de partos seculares de indústrias nascentes.
No caso extremo teremos custo de investimento muito alto, por conta das exigências de conteúdo nacional, financiado a taxas subsidiadas pelo BNDES. É mais que razoável duvidar de que tal estratégia seja sustentável a mais longo prazo. As implicações serão danosas para as finanças públicas, ainda mais em face da incontinência estrutural de gastos e sua acomodação por meio de aumento da carga fiscal. A comemorada ressurreição de setores de atividade que no passado não sobreviveram à concorrência internacional - como a indústria naval, por exemplo - leva à desconfiança de que poderia estar havendo simples criação de nova manada de elefantes brancos.

Não há qualquer indício de que a candidata presidencial governista reconheça a inadequação dessas políticas públicas. Muito pelo contrário. Por outro lado, mesmo que o candidato de oposição reconheça a necessidade de sua reformulação, ao menos parcial, seria ingênuo pensar que posições de princípio dominem o cálculo político em meio a tão farta distribuição de benesses. Vai ser difícil e custoso fazer valer a racionalidade.

*MARCELO DE PAIVA ABREU, DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, É PROFESSOR TITULAR NO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO

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