domingo, julho 04, 2010

JOÃO UBALDO RIBEIRO

A ilha e a tecnologia
JOÃO UBALDO RIBEIRO

O ESTADO DE SÃO PAULO - 04/07/10

Aqui na ilha, não temos ficado indiferentes à questão do uso da tecnologia nas Copas. Aliás, ao contrário do que insinuam maledicentes, Itaparica sempre foi muito ligada à tecnologia de ponta, apesar de circunstâncias fre-quentemente desfavoráveis, como no meu tempo de menino, em que só tínhamos energia elétrica do escurecer até as dez da noite. Não nos deixávamos abater e nos esforçávamos para absorver da tecnologia tudo o que era possível. Por exemplo, assistíamos ao funcionamento da bomba de gasolina a manivela do posto de Waldemar, o único da ilha. Era um programaço, com os números rodando e barulhinhos de ficção científica pontuando a função. Dava para en-cher a manhã inteira, quando não havia uma pelada a disputar.

Além disso, muitas das coisas que, fora da ilha, parecem novidades aqui já são fartamente conhecidas, desde os antigos. Gabam-se os americanos, por exemplo, de terem mandado um homem à Lua, façanha, aliás, de que muita gente boa duvida. Houve quem assistisse à tal chegada na televisão, mas, como sintetizou admiravelmente Waltinho Filósofo, o fundador da Escola Filosófica do Sorriso de Desdém, "ninguém viu lua nenhuma, só viu um sujeito de escafandro", de maneira que o ceticismo parece ter razão, fazendo jus, os tais americanos embusteiros, a um vasto sorriso de desdém. Itaparica não mandou homem nenhum à Lua, mas fez melhor, como confirmarão os que, da mesma forma que eu, ouviram da boca do próprio finado Lamartine a celebrada narração dos foguetes.

Nessa época, começo do século XX, Lamartine, ainda mocinho, já se notabilizava por seu talento e esmero na confecção dos melhores foguetes de todo o Recôncavo Baiano. Cada foguete seu era uma obra de arte individual, até mesmo na fabricação da pólvora, que não era comprada na mão de fornecedores, mas feita e temperada por ele mesmo, segundo uma fórmula secreta dos portugueses, que descobrira numa escavação junto à fortaleza de São Lourenço. Não tinha mãos a medir em encomendas de festas de santos, inaugurações, feriados, comícios, grandes casamentos, grandes aniversários e tudo mais que exigisse foguetório de alta qualidade. Eram esplêndidos foguetes, daqueles cuja carga explosiva sobe amarrada a uma vareta ou taquara, chama-da de flecha.

E não foi assim que, já coberto de glória pirotécnica, Lamartine resolveu dar um capricho extra, na confecção dos foguetes para a festa cívica do Sete de Janeiro, data magna da ilha e da nacionalidade. Mas a decepção foi geral, quando foguete após foguete subia e sumia no espaço. Nem se ouviam as explosões, nem as flechas caíam de volta no chão. Chabu total, impensável fiasco? Estaria Lamartine desmoralizado? Ele próprio confessava aos ouvintes que chegara a duvidar, a achar que tinha errado no preparo dos foguetes. Bem, de fato, tinha, como se viu logo em seguida, só que o erro fora por exagero na mistura da pólvora, rompante natural da juventude, que ele agora compreendi-a. Porque, na hora em que já ia desculpar-se com o prefeito e as outras autoridades presentes na festa, finalmente caiu uma flecha, que se cravou no chão, bem junto a eles. Só que não era apenas a flecha, havia um papel espetado nela. Conferiram, era um bilhete. O bilhete dizia o seguinte: "Prezado Lamartine, não solte mais seus foguetes, que estão me furando o céu. Seu criado, Pedro Apóstolo."

A mesma coisa pode ser dita de outros avanços, que para nós não são nem tão avanços assim, como as comunicações eletrônicas. De novo, vem à tona o nome de Waltinho Filósofo, que criava pombos-correios extraordinários, os quais não só levavam cartas, como procuravam os números das casas dos destinatários, tomavam recibo e só faltavam vender selos. Um desses pombos, de acordo com alguns testemunhos, foi alistado na Força Expedicionária Brasileira e serviu com distinção na Itália, onde, por sinal, montou pombal com uma pomba romana e morreu de morte natural, condecorado e cerca-do de grande consideração. Como se vê, ninguém pode nos ensinar nada em matéria de tecnologia, nem o nosso conservadorismo, quanto a seu uso no futebol, pode ser atribuído a um pretenso atraso.

No bar de Espanha, a discussão sobre o tema vem ocupando as atenções e a opinião mais ouvida é que o futebol está gravemente ameaçado em um de seus principais fundamentos, nomeadamente o juiz ladrão. A convicção de quase todos é de que, sem o juiz ladrão, torcer vai ficar muito difícil. O sempre respeitado parecer de Toinho Sabacu, conhecido por seu equilíbrio, foi o primeiro a manifestar-se.

- Por exemplo - disse ele - que seria da torcida do Bahia, se não fosse o juiz ladrão?

A indagação suscitou imediata indignação da parte da torcida atingida, até porque todo mundo sabe que Sabacu é Vitória. Somente a interferência de Zecamunista é que restaurou a harmonia. Sem o juiz ladrão, nada seria da torcida do Bahia e nada seria da torcida do Vitória, argumentou ele. Era a dialética mais uma vez em ação, funcionava para qualquer time. Sim, senhores, onde ficaria o torcedor que vê seu time derrotado, se não pudesse botar a culpa no juiz? E o pênalti não marcado, o falso impedimento, o tiro de meta que vira escanteio, o cartão amarelo mal aplicado?

- Mas não se enganem, não - advertiu ele, para finalizar. - Se ninguém reagir, esse pessoal da tecnologia vai acabar inventando uma máquina para botar no lugar do juiz. E a Copa vai terminar sendo um torneio de video-game, é o que eles querem.

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