À beira de um ataque de nervos
Ilan Goldfajn
O Estado de S.Paulo - 06/07/10
Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça. Um ano e meio após a crise financeira internacional, o trauma continua. Bastou uma desaceleração econômica no trimestre recém-terminado para voltarem os temores de novo mergulho na recessão global. "Tem mais de 50% de chance", alerta Bob Shiller, famoso economista de Yale, reconhecido por acertar suas previsões. É necessário um novo megapacote de gastos para estimular a economia americana, argumenta Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, hoje colunista e polemista. Enquanto isso, na Europa a receita é o oposto: Alemanha, Espanha, Itália, Irlanda, Portugal e outros apertam os cintos, cortam gastos e aumentam impostos. O objetivo é mostrar que as dívidas serão pagas, de forma a reduzir o risco (e os juros) e, assim, restaurar a confiança nessas economias para voltar a crescer. A divisão de opiniões parece mais profunda que o normal. Afinal, quem tem razão: é para o governo gastar mais ou menos?
A resposta depende das restrições que o mercado (isto é, capacidade de rolar a dívida) impõe a cada país e da possibilidade de adiar o ajuste fiscal para o médio e o longo prazos. Vejamos.
Por um lado, parece que os governos têm, de fato, de apertar o cinto. As preocupações fiscais ressurgem agora, tal como os tremores sucedem ao terremoto principal. A crise só piorou uma situação que já era delicada. Dívidas que eram frágeis de antemão, dadas as futuras obrigações previdenciárias em países em processo de envelhecimento (mais aposentados para menos contribuintes), receberam um choque adicional no resgate da crise financeira (lembre-se que os governos tiveram de garantir todos os passivos dos bancos e afins). Assim que as preocupações imediatas da crise (depressão, quebras, etc.) se diluíram, os investidores começaram a reavaliar os títulos governamentais que ofereciam "pouco risco", como os da zona do euro, e começaram a demandar juros maiores. Algumas economias não suportaram o olho fino nas suas finanças públicas nem o aumento de juros que se seguiu (para compensar o risco). O caso da Grécia foi o mais emblemático. Quando a maré baixou, muito país ficou nu.
O problema é que vários países desenvolvidos terão de fazer o ajuste fiscal simultaneamente. E se isso impactar muito o crescimento, a relação dívida-PIB não cairá como deveria. Para um economista latino-americano parece o roteiro de um filme da década de 80 (ou de um filme argentino mais moderno). O final será uma ou duas décadas perdidas.
Por outro lado, após vários trimestres de alívio vindo de uma recuperação mais vigorosa, o mundo defronta-se de fato com uma desaceleração neste último trimestre. O mais provável é que não seja o começo do fim (uma depressão), mas sim uma desaceleração temporária, reflexo da volatilidade do crescimento num mundo sujeito a mais dúvidas. Os mais otimistas - que extrapolavam a velocidade da recuperação para um futuro brilhante - desapontaram-se. E os mercados, hoje, sofrem com a desilusão de que o passado brilhante - o de crescimento forte sem (percepção de) risco - não volta. E não volta mesmo: aquele passado era uma bolha, agora sabemos todos, após o seu estouro.
O risco, para Krugman, Shiller e outros, é que não seja uma desaceleração temporária, mas o sinal de que o efeito dos estímulos fiscais, assim como dos juros baixos (em zero) e dos estímulos monetários (via compra de ativos), se esgotou. E que a frágil confiança na economia venha a desmoronar, reduzindo o ímpeto para consumir e investir. Receita para um novo mergulho na recessão.
A proposta econômica desses analistas é coerente com essa visão. Se o estímulo se esgota, há que implementar um novo pacote fiscal e monetário. A princípio, para tais analistas, não haveria o efeito colateral de dobrar a dose fiscal nos EUA. Os juros cobrados nos títulos do governo americano encontram-se muito baixos, não revelando nenhum risco de rolagem ou temor na dinâmica crescente da dívida. Na verdade, ocorre o oposto. Quando os temores globais aumentam, os investidores fogem para os ativos americanos, considerados de menor risco. Isso dá o sinal de que os EUA ainda poderiam implementar mais um estímulo fiscal sem comprometer a sua capacidade de rolar a dívida.
Essa situação é diferente da europeia, em que vários países não têm mais a capacidade de rolar sua dívida a juros baixos. A capacidade de continuar implementando novas políticas fiscais expansionistas não existe mais para vários países da Europa - talvez com exceção da Alemanha, que tem a opção, mas resolveu seguir o caminho da austeridade.
Apesar da aceitação da dívida americana no mercado, isso não significa que não seja necessário um ajuste fiscal no médio e no longo prazos. Para financiar os futuros gastos de saúde e previdência é primordial ajustar as receitas ou diminuir os benefícios. Para alguns, o ideal seria implementar uma política expansionista enquanto é possível e, simultaneamente, anunciar uma política fiscal futura que equacione despesas e receitas no médio e no longo prazos. A dúvida é se o anúncio de austeridade no médio e no longo prazos enfraquece o impacto do estímulo fiscal no curto prazo, e vice-versa. É uma equação possível, mas difícil de implementar. (Para quem tiver interesse nas prescrições do FMI acerca do ajuste fiscal nas economias avançadas, consultar: Olivier Blanchard and Carlo Cottarelli, Ten Commandments for Fiscal Adjustment in Advanced Economies, posted on June 24, 2010 by iMFdirect.)
Em suma, as restrições de rolagem da dívida não permitem à maioria dos países da Europa cogitar de novo estímulo fiscal. Talvez nem seja factível nos EUA, apesar das condições ainda favoráveis de mercado. A ironia é que vários países europeus estouraram as metas de déficit fiscal no passado, antes da crise, quando ainda era possível uma correção de rota sem os difíceis dilemas atuais. É uma lição para o Brasil: momento de corrigir trajetórias equivocadas é quando há confiança e a crise ainda é dos outros.
ILAN GOLDFAJN É ECONOMISTA-CHEFE DO ITAÚ UNIBANCOC
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