Gêmeas siamesas
André Meloni Nassar
O Estado de S.Paulo 21/07/10
Quando o debate internacional sobre o programa de enriquecimento de urânio do Irã estava bombando, o ministro Celso Amorim escreveu artigo em jornal estrangeiro no qual, ao defender a crescente importância dos países emergentes no cenário internacional, exaltou, entre outros fatos, as conquistas obtidas por esse grupo de países na Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Colocar na mesma cesta uma negociação com objetivos comerciais e questões de segurança e governança global revela - sem nenhum julgamento de valor da magnitude da importância de cada uma delas - um grande problema da política externa brasileira: o desinteresse em reconhecer que diplomacia política e política comercial são uma via de mão dupla que não se estabelece se a primeira subjuga a segunda. Viabilizar o desenvolvimento destas gêmeas siamesas, portanto, é a saída disponível para que a comercial volte a florescer no Brasil.
Não se põe em dúvida o objetivo definido pela política externa brasileira de tornar o Brasil protagonista mundial em temas como segurança e paz, ajuda humanitária e, com um pouco de otimismo, governança global e integração regional. Mas será possível atingir esse protagonismo com uma política comercial nanica? A meu ver, não.
Embora essa busca por protagonismo possa ser exercida de muitas outras formas que não as escolhidas pelo governo Lula, muitas razões podem ser evocadas para justificar a opção feita pela diplomacia no poder. Além disso, o Itamaraty é uma burocracia reconhecida como competente e capacitada para dialogar com outras nações e, principalmente, com o devido grau hierárquico e estabilidade necessários para que os diplomatas sigam à risca as opções tomadas pelos cabeças do Ministério.
Até pouco tempo atrás a diplomacia brasileira, em suas declarações públicas, ainda se preocupava em explicar as decisões tomadas em política comercial, sobretudo no contexto da Rodada Doha, com argumentos de comércio exterior. Após o episódio das negociações com o Irã e encorajada por diversas reações positivas no exterior quanto ao papel do Brasil no assunto, a diplomacia esqueceu suscetibilidades e deixou aflorar a real razão das ações de política externa do País: a busca de protagonismo internacional na área de segurança e governança global. E as recentes afirmações enaltecendo a criação do G-20 da OMC como estratégia de mudança na relação de poder nas negociações comerciais multilaterais jogaram uma pá de cal na esperança de quem, como eu, ainda acreditava que havia alguma motivação comercial nas ações da diplomacia na Rodada Doha.
A culpa pelo esquecimento da política comercial, ao longo do tempo e no governo atual, não é só do Itamaraty. Num país que ainda utiliza tarifas de importação como um mecanismo démodé de política industrial não se poderia esperar nada diferente. Sem pressão alguma das demais áreas do governo, do Congresso Nacional e dos setores industriais para dar resultados na área comercial, a diplomacia encontrou um meio de cultura ideal para privilegiar o componente político e negligenciar o componente comercial da política externa.
Com as coisas às claras na política externa, fica mais fácil explicar os insucessos do Brasil em liderar o Mercosul para fazer um acordo de comércio com a União Europeia e o enterro da negociação da Área de Livre Comércio das Américas. O governo brasileiro simplesmente não tinha interesse em finalizar os dois acordos porque nenhum deles contribuía para a estratégia de protagonismo mundial. Agora que o Brasil já se tornou um protagonista mundial e finalmente, na perspectiva da diplomacia, colocou o "pé na porta" no jogo da segurança global, é hora de o Itamaraty colaborar para que a política comercial caminhe por suas próprias pernas.
O tema de política comercial está a um passo de ser sepultado no Brasil. Como se as razões de sempre não fossem suficientes - alta carga tributária, elevado custo de logística, baixo nível de investimento em inovação e câmbio valorizado -, o argumento de que a economia se está desindustrializando pela concorrência dos produtos importados e pela crescente concentração da pauta exportadora em commodities pode levar o País a esquecer por mais quatro anos os acordos comerciais. Vê-se que a política comercial precisa urgentemente de um patrocinador no governo, e esse patrocinador, ironicamente, tem o mesmo nome do seu algoz: Itamaraty.
Na busca por protagonismo mundial nos últimos oito anos, o Brasil abriu mão de quatro grandes benefícios que resultam de acordos comerciais: promoção de investimentos, transferência de tecnologia e inovação; apoio a mecanismos de agregação de valor às exportações, estimulando o crescimento de ambos os setores de valor adicionado e de commodities; suporte à estratégia de busca pelo protagonismo internacional; fonte de pressão para a execução das reformas estruturais de que o setor industrial necessita.
Para não excluirmos a política comercial de vez da agenda, duas mudanças são necessárias. A primeira é governo e setores industriais reconhecerem que acordos comerciais promovem o ganho relativo, e não o absoluto. Mesmo que um acordo comercial não promova ganhos absolutos evidentes para a economia brasileira (por exemplo, no saldo entre setores ganhadores e perdedores, que é um raciocínio simplista de avaliação de acordos muitas vezes utilizado no País), os ganhos relativos associados a se ter acesso privilegiado em comparação a outros países precisam ser avaliados. A segunda é dar independência para a formulação da política comercial, tirando de hibernação forçada a área econômica do Itamaraty e coordenando suas ações com as políticas de promoção comercial e as ações de promoção de investimento. Assim, o País pode perseguir os seus objetivos de diplomacia política sem canibalizar os de política comercial.
DIRETOR-GERAL DO INSTITUTO DE ESTUDOS DO COMÉRCIO E NEGOCIAÇÕES INTERNACIONAIS (ICONE)
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