O direito à confrontação
Mauro Chaves
O Estado de S.Paulo - 19/06/10
Desde que a Suprema Corte norte-americana, na década de 1970, firmou jurisprudência quanto à interpretação do direito à liberdade de expressão estabelecido em 1793 pela Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América - que se tornou uma espécie de base institucional da imprensa livre nas democracias contemporâneas -, passou-se a entender que muito mais importante do que o direito de o jornalista informar é o direito da sociedade de ser informada. Essa inversão de polaridade também cabe, perfeitamente, no processo eleitoral, em que é muito mais importante o direito de os eleitores conhecerem os que buscam seu voto do que o direito de os candidatos se fazerem conhecidos pelos eleitores. E nada melhor haverá para se conhecerem as características dos candidatos do que confrontá-los com seus adversários.
Os eleitores têm todo o direito de conhecer, em pormenores, as pessoas que existem por trás das transformações - às vezes "milagrosas" - operadas pela tecnologia avançada do marketing político, na cabeça, no corpo e na personalidade dos candidatos a governante. Especialmente porque tais transformações são apenas maquiagens, elementos de encenação que criam e aperfeiçoam personagens, para efeitos de apreciação pública, mas não têm condição alguma (e é óbvio que jamais poderiam ter) de alterar a estrutura de pensamento, as características de temperamento e, sobretudo, a biografia das pessoas - e qualquer tentativa de "reescrevê-la", ao molde stalinista, será espúria falsificação. Mas não havendo confrontação entre os candidatos as campanhas eleitorais podem ser absorvidas como se consomem as novelas, com suas cenas emocionantes ou maçantes, seus personagens marcantes ou menos envolventes - mas nada que ajude, efetivamente, a escolha de quem tenha a melhor capacidade de governar.
Há marqueteiros políticos que julgam ser possível candidatos desenvolverem suas campanhas eleitorais fugindo inteiramente de quaisquer embates com seus adversários. Partindo da suposição de que os eleitores sempre preferem as chamadas "campanhas positivas" - algo historicamente ainda não comprovado, além do fato de poder ser considerada muito positiva, pelo eleitor, a forte crítica ao que ele julga negativo -, marqueteiros vislumbram campanhas programadas para só passar "coisas boas" para o público: imagens positivas - e muito bem produzidas - na televisão, a apresentação de uma enxurrada de dados, gráficos, estatísticas, fotos e filmes de obras púbicas, depoimentos emocionados - de cidadãos comuns ou de bons atores anônimos que os representem -, crianças (muitas), multidões, efeitos especiais e coisas que tais, tudo isso embalado por fundo musical animado, criativos jingles e sonoplastia de alto nível profissional, visando sempre a agradar, emocionar e entusiasmar o público eleitor. Considera-se, então, que tanto críticas aos adversários quanto respostas a eventuais críticas destes podem significar desperdício do precioso tempo disponível na comunicação eletrônica de massa.
Levando em conta o nosso sistema de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão - e as restrições impostas, no período eleitoral, à livre expressão nos veículos de comunicação eletrônica de massa, o que não se vê em outras democracias do mundo contemporâneo -, é claro que os debates entre os candidatos, transmitidos pelas redes de televisão e de rádio, constituem o melhor mecanismo para o exercício do direito à confrontação eleitoral, mesmo que a exigência de participação de concorrentes sem condições de competitividade pulverize as discussões, dilua seu conteúdo e se torne pretexto para a fuga de candidatos que não queiram arriscar-se, por estarem à frente nas pesquisas de intenção de voto. E esses debates são fundamentais, mesmo que seus organizadores tenham de se submeter à "camisa de força" estabelecida pela legislação eleitoral. Mas a confrontação não se resume aos debates diretos, porque pode ocorrer no conjunto das aparições públicas dos candidatos, reproduzidas pela mídia, assim como no próprio horário gratuito, quando pelo menos parte dele é usado (o que é mais do que legítimo) para criticar ou desmentir adversários. De qualquer maneira, é direito inquestionável de todo eleitor ver e ouvir os "advogados do diabo" dos que pretendem disputar seu voto, ou assistir ao contraditório entre os que concorrem à tarefa de cuidar da coisa pública e/ou comandar um governo.
Hoje em dia, o desrespeito ao direito de o cidadão se informar melhor sobre o pensamento, a capacidade e o comportamento dos candidatos, por meio da confrontação dos adversários, pode ser combatido com a poderosa arma das redes sociais. A fuga ao contraditório, seja pelo não-comparecimento aos debates no rádio, na televisão ou pela internet, seja pela adoção de uma suposta "campanha positiva" no horário gratuito, pode despertar uma reação negativa, reproduzida de forma gigantesca via internet. A rapidez formidável desse tipo de comunicação se comprovou na última eleição presidencial norte-americana.
A confrontação de candidatos leva o eleitorado a fazer comparações, avaliações e, ao final, a escolha da candidatura que lhe pareça mais benéfica à sociedade. Isso diz respeito a programas e projetos, mas fundamentalmente a biografias - já que a boa execução dos programas e projetos depende da capacidade das pessoas que os comandam. Assim, por trás das maquiagens e dos efeitos especiais, o eleitor precisa conhecer o histórico dessa capacidade pessoal, pois é como saberá que fará melhor quem já provou que sabe fazer, porque já fez, e não porque outros fizeram ou deixaram de fazer.
JORNALISTA, ADVOGADO, ESCRITOR, ADMINISTRADOR DE EMPRESAS E PINTOR.
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