Monte de riscos
Miriam Leitão
O Globo - 15/04/2010
Uma liminar pode ser cassada, mas as dúvidas permanecerão. O espantoso no leilão da hidrelétrica de Belo Monte é que as dúvidas e incertezas estão em todos os pontos. Os fundos de pensão, que estão sendo empurrados para participar, acham que o retorno não garante nem suas obrigações atuariais. As empresas estão pressionando por mudanças na engenharia financeira.
Pode-se recorrer da liminar da Justiça do Pará que suspendeu o leilão de terçafeira, mas não dá para tapar com a peneira os enormes riscos de todos os tipos que essa obra representa.
As empreiteiras que desistiram de participar podem voltar. As negociações estão intensas. Querem condições de financiamentos ainda melhores, isenção de impostos, tudo que aumente o retorno do empreendimento.
Na pior das hipóteses, aceitam participar depois como construtoras.
Mas até os fundos de pensão estão dizendo que o retorno, com a energia a R$ 83 o megawatt, não lhes atende.
Se participarem, vai ser uma decisão política, uma imposição governamental.
Quem vê a questão apenas do ponto de vista ambiental acha que os riscos são grandes demais, até porque, como disse aqui, pareceres do Ibama não garantiram viabilidade ambiental do empreendimento, e mesmo assim foi dada a licença prévia.
Quem vê apenas do ponto de vista econômico-financeiro considera que as concessões ambientais tornaram o empreendimento arriscado demais. É que para não fazer um grande lago, como sempre se fez nas hidrelétricas tradicionais, a usina vai operar a fio d’água, com tecnologia de turbinas bulbo. Haverá alagamento, mas de uma área menor.
Mesmo assim é uma área considerável: 516 km2 serão alagados. Seria um lago três vezes maior. Essa “concessão” de redução da área alagada fará com em três meses por ano a usina possa estar produzindo apenas 1 mil MW, dos seus 11 mil MW potencial. A energia firme não deve passar de 4 mil MW, segundo todos os técnicos que ouvi. Da perspectiva do empreendedor, mais seguro seria fazer um grande lago, usar as turbinas tradicionais e ter uma energia firme mais alta. Eles dizem que abrir mão dessa possibilidade foi uma grande concessão feita às preocupações ambientais.
Da perspectiva dos ambientalistas, mesmo essa opção da nova tecnologia não é suficiente para tornar o impacto aceitável, já que será reduzido fortemente o fluxo da água do leito tradicional do rio, para desviar esse fluxo para a usina, e isso causará um impacto de dimensões ainda não calculadas.
O governo não respondeu às inúmeras dúvidas levantadas por ambientalistas, índios, ribeirinhos, ONGs, mas principalmente pelos técnicos do Ibama.
Há um ponto levantado como problema pelos dois lados, por razões diversas: a complexidade da obra. Terão que ser escavados canais de 30 quilômetros de extensão; o volume da escavação será de cerca de 230 milhões de m3, maior do que o Canal do Panamá, mobilizando três mil equipamentos pesados. Terão que ser construídos 260 quilômetros de estradas de acesso aos vários pontos do canteiro.
Os empreendedores, ou potenciais participantes do leilão, veem essa complexidade como custo e incerteza econômico-financeira. Os ambientalistas veem como impacto ambiental intolerável.
O problema dos empreendedores é fácil resolver: querem preço. Ou um preço maior para a energia que lhe dê, segundo ouvi ontem, um “colchão” de segurança para as surpresas de uma construção dessa complexidade, e para os riscos de paralisações, bloqueios e ações do Ministério Público; ou concessões fiscais e financeiras.
Os ambientalistas acham que a única coisa razoável a fazer é desistir da obra. O Ministério Público invoca o princípio da precaução e diz que com tamanha incerteza é preferível se interromper o processo agora, corrigir os vícios, responder às dúvidas, antes de se fazer o leilão.
O presidente Lula disse ontem que “eles já destruíram a floresta deles” e agora querem se intrometer na nossa.
Tenta acender com esse lugar comum o sentimento nacionalista pelo fato de dois artistas de Hollywood terem falado contra o projeto. Ninguém vai tomar uma decisão dessa importância pela opinião de qualquer celebridade do showbiz. As dúvidas são brasileiras.
Há um temor que ouvi de técnicos e de procuradores: o de que mesmo essa concessão de se fazer uma usina a fio d’água seja revertida mais tarde. Que diante da constatação, mais tarde, de que o projeto não é lucrativo, eles tentem fazer novas usinas.
O governo nega que haja esse risco. Mas empreendedores me disseram, com todas as letras, que, sim, se pensa que no futuro pode até ser feita uma usina tradicional de grande alagamento para que o projeto seja mais econômico.
Há uma enorme incerteza geológica que assusta tanto um lado quanto o outro. A escavação será feita num terreno que não foi suficientemente estudado. Como é uma área muito grande e o tempo era curto, o estudo foi feito por amostragem e tomou-se como boa a hipótese de que aquelas amostras representam toda a área. Vai se começar a escavar uma área que não se sabe até que ponto é rocha, até que ponto é terra.
Seja qual for o ponto de vista, a obra traz incertezas demais. O BNDES se prepara para amanhã afogar as dúvidas dos empreendedores, oferecendo um canal de dinheiro público que vai aumentar o subsídio ao financiamento.
Assim, o governo poderá dizer que conseguiu fazer um leilão por um preço baixo da energia, e uma parte enorme do custo será escondido nas condições de financiamento que ficarão abaixo, muito abaixo, do custo que o próprio governo consegue para rolar a sua dívida. Faltam três dias úteis para o leilão e as incertezas são insanáveis.
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