Por uma cabeça
Folha de S. Paulo - 28/03/2010 |
As lições do Plano Cruzado no governo Sarney serviram, oito anos depois, para ajudar no êxito do Plano Real FALTOU MUITO pouco para que o governo Sarney derrotasse a inflação logo no início da Nova República. Ao lado do presidente assisti, do ônibus que nos conduzia à comemoração do primeiro aniversário da morte de Tancredo em São João Del Rey, à alegria da multidão cansada de sofrer que ocupava cada palmo da estrada desde o aeroporto de Barbacena. Não foi daquela vez, mas, como de tudo fica um pouco, as lições do Plano Cruzado serviram, oito anos depois, para ajudar no êxito do Plano Real. Sarney foi audacioso com a inflação e voltaria a sê-lo ao suspender o pagamento da dívida. É fácil hoje dizer que não se deveria ter chegado a tanto. Os tempos eram, porém, heroicos e havia poucas alternativas. No recém-publicado diário da viagem de Tancredo, pode-se ver que ele mesmo, a encarnação da prudência, admitiu que poderia ser obrigado, contra a vontade, a romper com o sistema financeiro internacional. Foi em Washington, quando o secretário de Estado Shultz lhe comunicou que o FMI (Fundo Monetário Internacional) ia denunciar o acordo com o governo Figueiredo, impedindo que se concluíssem as negociações com os bancos privados e o Clube de Paris. O presidente tomaria posse com tudo em aberto e a dívida externa desestabilizaria um governo que, em vez de atender um mínimo de expectativas de país estagnado há anos, teria de sacrificar ainda mais as pessoas para pagar aos banqueiros. Na época, o Departamento do Tesouro do governo Reagan é que ditava a política do FMI para a América Latina, e a orientação era sempre a mesma: extorquir o máximo para satisfazer aos banqueiros. Já tinha começado o domínio dos bancos sobre o governo dos Estados Unidos, que acabou dando nesta crise pavorosa. Um após outro, Argentina, Peru, Brasil, todos tiveram de pagar sua libra extra de carne fresca aos Shylocks da banca de Wall Street. De Tancredo a Sarney, é nítida a continuidade. Não bastasse a dívida, Sarney teria o choque, no seu primeiro Sete de Setembro no Planalto, de saber que os Estados Unidos se aprestavam a aplicar sanções ao Brasil devido à Lei de Informática. A total ausência de colaboração não evitou que se aprovasse a Constituição mais democrática e avançada de nossa história, nem impediu que se desenvolvesse política exterior inventiva, base do melhor que se fez até agora: o reatamento com Cuba, resgate da última hipoteca da diplomacia ideológica do regime militar, a adesão a todas as convenções internacionais de direitos humanos, a prioridade não apenas retórica mas de realizações com a Argentina e a América Latina. O eixo Sarney-Alfonsín permitiu concluir acordos de integração graduais e equilibrados (elaborados por Samuel Pinheiro Guimarães), cuja preservação teria evitado as distorções do atual Mercosul. Contudo o principal foi criar uma diplomacia de paz cuja força provinha da defesa firme da democracia e dos direitos humanos que ambos acabávamos de recuperar. Seu legado mais perene foi gerar as condições para liquidar os sinistros e insensatos programas nucleares secretos de militares dos dois países. Nas condições adversas da Guerra Fria, da crise da dívida, do agravamento da inflação, venceu-se o desafio da morte de Tancredo e criou-se a base institucional e diplomática para o que hoje se colhe. Com um pouco mais de apoio, inclusive externo, talvez a colheita pudesse haver começado mais cedo. |
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