sexta-feira, fevereiro 26, 2010

WASHINGTON NOVAES

Uma lógica para os transporte

O ESTADO DE SÃO PAULO - 26/02/10


Tal como o tema da transposição de águas do Rio São Francisco, assombração que aparecia e desaparecia no Brasil ao longo de mais de um século, até o projeto ser levado à prática (contrariando cientistas, técnicos, ambientalistas, comitê de gestão da bacia, etc.), outra assombração recorrente volta mais uma vez ao noticiário - o projeto da Hidrovia Araguaia-Tocantins, talvez estimulado pela defesa que dele fez o ministro do Meio Ambiente, ao anunciar o veto às hidrelétricas no primeiro rio, em julho do ano passado, bem como um projeto do governo do Pará de operacionalizar essa hidrovia.

Muitas pessoas menos próximas da realidade concreta até defendem em princípio esse projeto, com o argumento de que hidrovias prejudicam menos o meio ambiente e permitem um custo de transporte inferior ao das rodovias e ferrovias. Mas não é o caso do Araguaia, com seus 2.115 quilômetros de extensão. Porque se situa numa região de formação geológica relativamente recente, onde a movimentação de camadas é ainda muito forte, até mesmo com cones de dejecção de areia de baixo para cima - o que explica não ter o rio um canal navegável permanente, pois a intensa movimentação de sedimentos desloca esse canal a cada ano. Uma medição feito por hidrólogos da Universidade Federal de Goiás em Aruanã, ainda no trecho médio do rio, mostrou que passam por ali a cada ano 5 milhões de toneladas de sedimentos.

Agora, está na pauta projeto apresentado pela senadora Kátia Abreu, também presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária, que propõe a criação, na calha principal do Araguaia, do primeiro "rio parque" do País. Segundo o projeto, ficariam proibidos ali barragens, eclusas, comportas, derrocamento de pedrais e alargamento de canais que "alterem o curso natural do rio ou a calha principal". Se aprovado e levado à prática, o projeto inviabilizará a hidrovia. Porque implantar ali um canal permanente para a navegação de barcos de carga pesada exigiria a dragagem anual, durante séculos, de milhões de toneladas de sedimentos (obra dos sonhos de empreiteiros), que ninguém sabe onde seriam depositados. Da mesma forma, a retirada de uma quantidade brutal de rochas. E tudo isso ainda levaria a prejuízos consideráveis para a diversidade vegetal e animal.

A questão da hidrovia do Araguaia faz parte de um contexto maior, que é o da inacreditável logística de transportes (ou sua falta) no País. Primeiro, a partir da década de 1950, com a prevalência do modelo rodoviário no País e o simultâneo sucateamento da rede ferroviária nacional, que tinha custos de implantação e manutenção muito menores. Depois, com a inviabilização ou postergação de projetos que poderiam ter revertido o quadro. É o caso, por exemplo, da Ferrovia Norte-Sul.

Em 1987, quando foi lançada a licitação para esse projeto, uma denúncia de irregularidades na escolha do consórcio de empreiteiras vencedor levou a que se confundisse tudo e se inviabilizasse toda a obra. Com graves prejuízos para o País. Que perdia a possibilidade de colocar as safras de grãos do Centro-Oeste diretamente num porto do Maranhão (sem precisar viajar até os portos do Sudeste/Sul), com forte redução do custo de transporte para a Europa e países do Pacífico (via Canal do Panamá). Essa redução de custo tornaria os grãos brasileiros mais baratos, por exemplo, que os norte-americanos nos mercados externos - e isso chegou a provocar cogitações de que a denúncia de irregularidades na licitação teria sido provocada por informações vindas de fora do País. Com isso perderam não apenas os produtores de grãos. Desperdiçou-se a possibilidade de contribuir para a descentralização econômica no País, a redução das disparidades regionais, a racionalização da matriz de transportes, avanços na balança comercial.

Quase 23 anos passados, embora desde 1987 se tenha mostrado a enorme vantagem dos custos do transporte ferroviário em relação aos rodoviários (quase 50% menos), a redução do preço dos transportes com a desnecessidade de os produtos do Centro-Oeste viajarem até o Sul - apesar disso tudo a Norte-Sul ainda não se concretizou, continua em obras que ninguém sabe quando terminarão. Em recente viagem do presidente da República a Goiás mostrou-se, por exemplo, que no trecho Palmas (TO)-Uruaçu (GO), apenas 16% estão concluídas; no trecho Uruaçu-Anápolis, 26%; no trecho Palmas-Açailândia (MA), as obras também ainda estão longe da conclusão - e a promessa era de que a ferrovia estaria toda implantada este ano. Na ocasião, o presidente da República anunciou que vai lançar o projeto de ferrovia Anápolis-São Paulo, assim como o da Ferrovia Leste-Oeste, que ligará Ilhéus, na Bahia, ao Tocantins e ao Pará.

Já se passou muito da hora de conceber um plano nacional de logística de transportes que leve em consideração não apenas os fatores econômicos e sociais (muitos deles mencionados neste texto), mas também os chamados custos ambientais. E começar a cogitar de outras questões embutidas na reformulação que será inevitável nas próximas décadas, dos caminhos da produção e consumo. Ela exigirá descentralização da produção (para minimizar transportes, energia, emissões de gases) e mudanças no consumo que levem a resultados na mesma direção. Seria muito conveniente que se antecipasse essa discussão. E também será oportuno e necessário examinar, pelos mesmos ângulos, o projeto da hidrovia do Pantanal e os planos de expansão da cana-de-açúcar nessa região (de novo ameaçada por legislação de Mato Grosso do Sul) e no Cerrado.

Lembra o professor Ignacy Sachs em seu extraordinário livro de memórias (A Terceira Margem, Companhia das Letras) a lição de seu mestre, o economista Michal Kalecki: uma nova ideia costuma levar o tempo de uma geração (20 anos) para se afirmar. Não se deve perder mais tempo.

Washington Novaes é jornalista E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

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