Contra o uso da "licença ética"
FOLHA DE SÃO PAULO - 23/12/09
Além de ser danosa aos credores, a PEC dos Precatórios contribuirá para fazer avançar a insegurança jurídica no país
EMBORA AOS poetas seja dada a licença poética para extrapolar as normas cultas, aos poderes públicos não é concedida "licença ética" para que tomem medidas que estejam acima do Estado de Direito, do interesse público e da democracia.
Por isso, não se pode aceitar os desmandos contidos na PEC dos Precatórios, que prega um "calote oficial" nos cidadãos brasileiros que ganharam na Justiça seus processos, mas que não receberão o que lhes é devido no prazo justo.
Com a nova PEC 62/09 (antiga PEC 12), Estados e municípios passam a ter legalmente os meios para protelar o pagamento dos precatórios -ordens de pagamentos sobre as quais não cabem mais recursos.
Na democracia, os Poderes precisam atuar para impedir qualquer burla ao Direito, e não criar meios para desvirtuar garantias constitucionais.
Assim sendo, diante da aprovação de proposta tão injusta pelo Congresso Nacional, a Ordem dos Advogados do Brasil decidiu ingressar, ao lado de outras entidades da sociedade civil, com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal para defender os interesses dos credores.
A Constituição assegura plenamente os direitos dos credores, explicitado pelo enunciado "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
No entanto, a PEC dos Precatórios ignora as decisões judiciais e as garantias legais do jurisdicionado. Rasga as sentenças transitadas em julgado, que são instrumentos de distribuição de justiça, e estabelece que os pagamentos realizados pelos poderes públicos (estaduais e municipais) serão efetuados no prazo de 15 anos, observados os limites mínimos de até 1,5% da receita corrente líquida (RCL).
Com um estoque de precatórios pendentes estimado em R$ 100 bilhões, quem entrar na fila de pagamento neste ano corre o risco de não receber o crédito dentro da expectativa de vida de um brasileiro -ou seja, 72 anos.
A ampliação dos prazos de pagamento, com um percentual tão baixo da receita que se reservaria para o custeio dessa quitação, reforça a certeza de que os governos continuarão a postergar o cumprimento de suas obrigações com os credores, embora estejamos diante de um incremento da arrecadação dos Estados e das prefeituras -arrecadação que, no ano que vem, deve crescer ainda mais com a recuperação da economia.
Diante desse cenário promissor das administrações públicas, as regras impostas pela PEC dos Precatórios tornam-se ainda mais imorais.
Temos a plena convicção de que os entes públicos dispõem de caixa para agilizar os pagamentos do estoque das dívidas de precatórios sem que isso traga um desequilíbrio para a prestação dos serviços públicos importantes à população.
A PEC prevê, ainda, que 50% dos precatórios deverão ser pagos em ordem cronológica, e a outra metade da dívida deverá ser quitada por três critérios: leilão, audiências de conciliação e menor valor.
O critério de leilões é uma manobra que podemos considerar uma "licença ética" do legislador, pois o credor que conceder o maior desconto sobre o total da dívida receberá primeiro, ou seja, receberá quem se submeter a arcar com um brutal e imoral deságio da dívida. Tal proposta não condiz com a moralidade pública. É, literalmente, "faca no pescoço".
Em diversas ocasiões a OAB-SP esteve à frente de acordo com a prefeitura e o governo de São Paulo para que os débitos fossem pagos. A PEC impede que a mesa de negociações continue franqueada à sociedade.
Além de ser danosa aos credores, a PEC dos Precatórios contribuirá para fazer avançar a insegurança jurídica no país, que tem à frente três grandes eventos internacionais -a Copa do Mundo de 2014, a Olimpíada de 2016 e a exploração do pré-sal- que dependerão de vultosos investimentos estrangeiros.
Os contratos não podem ficar sujeitos à criação de novas leis que se choquem com outras já existentes ou que se sobreponham a elas. Mas, no Brasil, fica patente que os direitos constitucionais podem ser abalados por novos diplomas legais, com efeitos retroativos, capazes de causar fissuras no ordenamento jurídico nacional.
Cabe ao Parlamento trabalhar para elaborar novas regras jurídicas que ajudem a solucionar conflitos, e não expor, ainda mais, o desequilíbrio de forças entre o Estado e o cidadão.
Na defesa da cidadania, não cabe "licença ética".
LUIZ FLÁVIO BORGES D'URSO , advogado criminalista, mestre e doutor em direito penal pela USP, é presidente da OAB-SP (seccional paulista do Ordem dos Advogados do Brasil).
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