Papel aceita tudo, até metas
FOLHA DE SÃO PAULO - 22/11/09
Por que se fixou meta sem antes finalizar o inventário de emissões?
Nos últimos dez dias, o governo Lula acertou duas no cravo e uma na ferradura ambiental.
Primeiro, anunciou a menor taxa de desmatamento já registrada, 7.000 km2 (um terço de Sergipe). Depois, que cortaria as emissões futuras do país em 36% a 39% até 2020.
A ferradura vai por conta de Reinhold Stephanes, ministro da Agricultura. Ele teria convencido o presidente a adiar mais uma vez a obrigatoriedade de averbar (formalizar em escritura) a reserva legal de propriedades rurais. A medida, se vingar, embaça o verniz verde que Lula e Dilma Rousseff arrumaram para ir a Copenhague.
Esse reconhecimento oficial dos passivos ambientais foi decidido em junho de 2008 e agendado para dezembro daquele ano. Depois, adiado para este dezembro. Agora, corre o risco de ficar para junho de 2011.
Seria um prêmio para quem desmatou ilegalmente. Não o primeiro, nem o último. É tradição no Brasil punir quem cumpre as regras. Os economistas e juristas chamam isso de "moral hazard" (risco moral), um poderoso fator de insegurança jurídica. O incentivo implícito ao comportamento criminoso garantido pela impunidade é tão certo quanto a taxa de desmate, medida por satélite.
Duvidosos são os números projetados para a redução das emissões de gases do efeito estufa (GEE) até 2020.
Não porque os especialistas que ajudaram a produzi-los sejam inconfiáveis, mas porque esse tipo de projeção é complexo e muitas coisas não ficaram bem explicadas. Pelo menos quatro coisas, para ser exato. Primeiro ponto nebuloso: por que se deu início a esse exercício de fixar metas sem antes finalizar o inventário de emissões brasileiras? Chega a ser ridículo calcular quanto o país estará produzindo de gases do efeito estufa daqui a dez anos quando o dado mais recente disponível é de... 1994. Isso mesmo, de 15 anos atrás.
O novo inventário está em produção há anos pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Enquanto o governo resistia a assumir metas de mitigação, coisa que não era obrigado a fazer pelo acordo de Kyoto, talvez fizesse algum sentido -para cabeças limitadas- esconder o crescimento das emissões.
Agora, virou piada de mau gosto. Supõe-se que as emissões totais hoje sejam da ordem de 2 bilhões de toneladas de CO2-equivalente (o potencial de causar aquecimento global de outros gases, como metano e óxido nitroso, é "traduzido" por essa medida no valor do gás carbônico). Estima-se que em 2020 serão 2,7 bilhões, cifra que seria então reduzida para algo em torno de 1,7 bilhão.
E se o valor atual for 1,9 bilhão? Ou 2,1 bilhões? Não é pouca porcaria. Cortar 100 milhões de toneladas anuais, ao longo de dez anos, pode exigir R$ 20 bilhões em investimentos -isso se for empregada uma opção barata de mitigação, como a recuperação de pastagens degradadas. Por falar nisso, quanto vai custar o esforço total de corte de emissões anunciado pelo governo federal? É a segunda grande questão sem resposta.
Só o setor agrícola precisaria de R$ 86 bilhões. E os outros?
Terceiro enigma: Por que a meta do governo paulista, anunciada dias antes, é tão desproporcionalmente mais baixa que a federal? José Serra falou em 24 milhões de toneladas de redução em 2020. Dilma Rousseff, em 1 bilhão. Mesmo com a Amazônia pesando só na balança federal, essa desproporção parece gritante. Por fim, ao inscrever as metas na lei nacional do clima como compromisso voluntário e não obrigatório, estaria Lula querendo dizer que se sente livre para não cumpri-las?
MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br
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